Assepsia na acupuntura
TABELA DE CONTEÚDOS
Quais as melhores técnicas de assepsia na acupuntura? São práticas correntes no dia a dia dos profissionais?
Como é que os profissionais da área adaptam as técnicas de assepsia ao longo de todas as suas abordagens que incluem acupuntura, ventosas e massagem?
Modelo idealizado de assepsia na acupuntura
Neste capítulo espero focar-me de forma sumária naquelas que seriam as melhores praticas de proteção do paciente e do terapeuta nas 3 variantes terapêuticas mais usadas: acupuntura, ventosas e massagem.
Técnicas invasivas
A acupuntura, como técnica invasiva, existe uma série de procedimentos que garantem a proteção de todos os envolvidos.
1 – técnicas de manuseamento da agulha: diminuem a probabilidade do terapeuta se picar com a agulha.
2 – uso de luvas: uma das principais componente de assepsia na acupuntura e também uma das mais desprezadas.
3 – uso de agulhas descartáveis: muito comum atualmente. Há alguns anos atrás muitos acupuntores não usavam agulhas descartáveis.
4 – lixo para material contaminado: obrigatório por lei com a regulamentação.
5 – desinfeção da pele a ser puncionada.
Ventosas
As ventosas exigem menos cuidados com a assepsia mas mais dispendiosos e quase ninguém os cumpre.
O principal procedimento, de assepsia na acupuntura, a ter atenção é a esterilização das ventosas. As ventosas entram em contacto com o sangue do paciente e todo o material reutilizado que entre em contacto com o sangue do paciente deve ser esterilizado.
A única vez que vi ventosas esterilizadas a serem usadas foi quando dei consultas numa clinica médica que tinha autoclave.
O meu gabinete atual não tem autoclave e automaticamente não uso ventosas.
Observo este erro tanto nos gabinetes de acupuntura como nos gabinetes de fisioterapia que usam e abusam das ventosas não esterilizadas.
Os mesmos acupuntores e fisioterapeutas que usam e abusam de ventosas não esterilizadas provavelmente recusar-se-iam ser tratados por um dentista com as mesmas práticas!
Quando se associam ventosas com acupuntura, a probabilidade de contacto com o sangue do paciente ainda é maior pois a ventosa provoca maior saneamento da área pontuada e algumas técnicas de sangria são feitas com ventosas.
Algumas clinicas de acupuntura referiam usar boas técnicas de desinfeção. Mas isso é claramente insuficiente.
A esterilização de ventosas continua a ser um problema não falado e desprezado por muitos acupuntores e fisioterapeutas.
Técnicas manuais
Eu sou osteopata e acupuntor. É prática comum integrar técnicas manuais e técnicas invasivas nos meus tratamentos.
A forma como integramos essas 2 abordagens diz muito acerca da nossa capacidade de nos protegermos.
Na medicina chinesa deve a massagem ser feita antes ou depois da acupuntura?
Uma das questões que alguns pacientes me fazem, é se no final da consulta eu faço massagem TuiNa!
Massajar ou mobilizar tecidos de zonas punturadas, com as mãos nuas não é a coisa mais inteligente. No entanto é mais comum do que seria de esperar.
Existem algumas estratégias úteis:
1 – proteger-se de zonas punturadas usando uma toalha para a massagem, após limpeza correta das regiões puncionadas;
2 – aplicar técnicas manuais antes de técnicas invasivas;
3 – garantir a melhor assepsia na acupuntura, limitando surpresas indesejadas;
4 – usar luvas se for preciso tocar numa região que foi puncionada.
A realidade clinica: do passado aos dias atuais
Após alguns anos a dar aulas e a acompanhar alunos em estágios consegui ter uma noção mais correta de como os profissionais usam as técnicas de assepsia na acupuntura.
As práticas não são as melhores. O facto de não existir uma única cadeira de assepsia na acupuntura, nas diferentes escolas ou nenhum documento público das principais associações do setor é um indício forte do sentimento da classe em relação a este problema.
Uma parte significativa deste problema tem a ver com as crenças esotéricas dos acupuntores ocidentais.
Escolas no Brasil proibiam a desinfeção de pele com álcool porque afetava o fluxo energético local. Numa reunião de professores uma colega ridicularizava o uso de luvas porque impedia a passagem de energia para o doente.
Mesmo assim as coisas foram melhorando. Noto mais acupuntores a usarem luvas e algumas escolas deixam os alunos usar luvas nos estágios clínicos.
Mas foi uma evolução pequena e fica muito aquém daquilo que seria de esperar de uma classe que se ser afirmar no panorama da saúde.
Uma história verídica
Há uns anos observei os procedimentos, de assepsia na acupuntura, efetuados por um antigo aluno.
Fez o tratamento de acupuntura sem qualquer proteção.
Na retirada da agulhas, ocasionalmente, usava o dedo como tampão reflexo caso algum ponto sangrasse.
De seguida aplicou ventosas e no final uma massagem com contacto direto entre as mãos dele e a pele do paciente.
Após terminada a consulta, o aluno-terapeuta dirige-se para uma sala isolada para fazer chi kung e eliminar as “energias negativas”.
Este aluno-terapeuta não fez nada que aparentemente fosse reprovador para os seus professores ou para os seus colegas.
E muitas pessoas com quem falei ao longo dos anos, de escolas diferentes, relatavam casos semelhantes.
Esta história verídica já tem mais de 10 anos e eu espero que as práticas de assepsia na acupuntura tenham melhorado.
Mas esta história também ilustra o desprezo sentido pelas instituições e praticantes relativamente a práticas de assepsia na acupuntura.
A oposição ao uso de luvas
Ao contrário do que se poderia pensar o uso de luvas para punção não é considerado como boa prática profissional por uma grande número de profissionais.
Os argumentos, contra esta importante técnica de assepsia na acupuntura, são velhos e conhecidos mas persistem.
Em 2017 tive a infelicidade de ler muitos deles em grupos sociais relevantes para a comunidade portuguesa de acupuntores.
Os argumentos contra o uso e luvas eram variados e serão analisados nas próximas linhas.
Uso continuado de luvas cria um ambiente ideal à proliferação de bactérias
Ou seja ao usar luvas estamos a contribuir para uma maior contaminação do espaço onde trabalhamos. E isso é mau.
Este é um argumento que usa duas estratégias:
(1) manipula um facto credível de forma a sustentar o contrário daquilo que esse facto realmente sustenta e
(2) usa uma estratégia política de criar um falso problema de forma a garantir uma solução conveniente.
Faz-se o mau uso de um argumento cientifico para invalidar a própria ação das luvas que é plenamente reconhecida pela ciência como importante para evitar contágio com materiais contaminados.
Esta é das estratégias que mais chateiam os cientistas quando tem de lidar com muitos pseudo-intelectuais e fundamentalistas ideológicos.
Neste caso, numa discussão afirmava-se que as luvas criam um ambiente propicio ao desenvolvimento de colónias bacterianas e que é a própria Ordem dos Médicos a afirmar isto, (com o objetivo de se atacar o uso de luvas na acupuntura) numa discussão que começou com um post da Ordem dos Médicos a defender o uso de luvas na acupuntura.
Sobre este assunto a OMS afirma:
“prolonged use of gloves for contact precautions in the absence of considering the need to perform hand hygiene can result in the transmission of germs.” (1)
E defende o uso de luvas com base nos seguintes critérios:
“To reduce the risk of contamination of health-care workers hands with blood and other body fluids…”
“To reduce the risk of germ dissemination to the environment and of transmission from the health-care worker to the patient and vice versa, as well as from one patient to another.”
Em segundo lugar este argumento pretende criar uma sensação de insegurança ou perigo para justificar uma tomada de posição.
Não há nenhuma evidência que o uso racional de luvas na acupuntura, ou em qualquer outra atividade clinica, seja uma fonte de contaminação bacteriológica ou um problema de saúde.
Usar este argumento é uma manipulação grotesca de informação clinica e não tem qualquer tipo de validade.
Luvas diminuem a percepção tátil o que dificulta a deteção de pontos de acupuntura
As luvas podem diminuir a percepção tátil mas isso não é relevante.
A falta de treino é que não permite ter uma percepção tátil mais desenvolvida e isto sim é relevante.
Das estruturas mais difíceis de palpar, na prática clinica, são vasos sanguíneos em toxicodependentes ou em pacientes que fizeram quimioterapia.
É o treino que permite desenvolver sensibilidade nos dedos para encontrar estes vasos – não é por acaso que se usa sempre, ou quase, o mesmo dedo.
E é a prática que permite que muitos profissionais consigam detetar esses vasos… mesmo a usar luvas.
Este não é um problema que se coloque na avaliação do paciente via palpação: a palpação do pulso assim como muitas manobras de manipulação ou massagem podem prescindir de luvas.
Este é um problema que se coloca a alguns acupuntores que pretendem “sentir os pontos de acupuntura” ou “sentir a energia dos pontos”.
Prescindir de meios de segurança clinica para sentir energias imaginárias ou convenções sociais chinesas, em pleno século XXI é o maior atestado de incompetência que poderíamos passar a nós próprios.
E no entanto é algo que enche de orgulho muitos acupuntores.
Um dos argumentos contra o uso de luvas afirmava que estas afetavam a relação de transmissão energética entre paciente e terapeuta.
Dos 33 acupuntores que participaram numa discussão recente que também referia este argumento (via posts ou likes) não houve um único a contrariar este argumento e somente 3 eram abertamente a favor do uso de luvas na acupuntura.
Pelo menos 14 aprovaram a ideia que o uso de luvas na acupuntura é uma “Má Prática Clinica”.
As luvas não protegem contra picadas
Este é um falso argumento e outro exemplo da estratégia política de criar falsos problemas para oferecer soluções convenientes.
As luvas não tem como função proteger de picadas.
Não tem lógica prescindir de um mecanismo de proteção clinica porque ele não evita uma situação para a qual não foi projectado.
A segurança do acupuntor está dependente de uma série de fatores onde se incluem técnicas de trabalhar com as agulhas de forma a evitar picadas.
Diminuem a destreza manual e aumentam o risco de nos picarmos
Para discutir este ponto vamos dividir em duas partes:
1 – Diminuem a destreza manual
É a primeira vez que vejo alguém usar a inexperiência clinica como uma justificação racional para uma prática clinica menos segura.
É óbvio que quem não tem hábito de usar luvas vai sentir uma maior dificuldade ao início. Mas isso deve-se à sua falta de experiência.
Se fossemos dar validade a este argumento ninguém fazia acupuntura: mais não seja porque ninguém nasce com destreza manual desenvolvida.
2 – Aumentam o risco de nos picarmos
Uma vez que os defensores destes argumentos não usam luvas presumo que não falem da sua própria experiência.
E uma vez que não existe um único estudo sério que defenda tamanho disparate presumo que seja só uma invenção para justificar a falta de uso de barreiras protetoras.
Afirmar que o uso de luvas aumenta o risco do acupuntor se picar é uma pura invenção de quem gosta de usar este tipo de argumentos.
Não há nenhuma razão, estudo ou experiência que justifique tal afirmação.
Pelo contrário: muitos manuais e documentos oficiais indicam que em algumas práticas cortantes ou perfurantes deve-se usar 2 pares de luvas.
O uso de luvas está bem estabelecido como um sistema de proteção para profissionais de saúde que usam objetos perfurantes ou cortantes.
Argumentar ad absurdum contra a assepsia na acupuntura
Uma estratégia na falta de argumentos lógicos consiste em argumentar ad absurdum.
Ou seja, argumentar até se conseguir arranjar um qualquer argumento que justifique a nossa posição, por muito descabido que seja esse argumento.
Estas estratégia já foi usada várias vezes até chegarmos a situações absurdas.
1 – Coerência: para usar luvas temos de usar máscaras
O uso de luvas está disposto como um mecanismo de proteção especifico para determinadas práticas entre as quais a acupuntura.
Alguns defendem em nome da coerência que também tenha de se usar máscara porque existem doenças que são passadas pelo ar.
É verdade que existem imensas doenças que são passadas pelo ar mas isso não significa que tenha algo a ver com a prática da acupuntura.
A lógica é definir um conjunto de regras de segurança que estejam relacionadas com a nossa prática e não criar uma redoma assética à nossa volta porque existem diferentes formas de propagação de uma doença.
Uma doença que se propague pelo ar vai faze-lo dentro e fora do consultório, portanto usar máscara dentro do consultório de acupuntura não tem lógica e não tem qualquer relação com os perigos associados à nossa prática da acupuntura.
Se se continuar por esta linha acabamos por justificar o uso de fatos protetores na acupuntura… com base na coerência pois nunca se sabe quando pode aparecer um novo virus de Ébola com um maior tempo de incubação.
2 – Luvas na acupuntura só na extração de agulhas
Também há quem defenda que as luvas não devem ser usadas na inserção e manipulação de agulhas e somente na extração de agulhas.
Este argumento é uma forma de justificar o não uso de luvas dando ênfase a uma suposta justificação técnica que só confunde e leva a uma série de situações que são simplesmente anedóticas.
Ou seja na prática não tem qualquer utilidade: o acupuntor coloca luvas e vai retirar a agulha que está presa.
Precisa de ser manipulada mas o acupuntor não deve manipular a agulha de luvas logo tira as luvas, manipula a agulha, volta a colocar luvas e agora tenta tirar a agulha novamente. Isto parece viável?
O problema em entrar em discussões com argumentos ad absurdum é que somos obrigados a entrar nesse ciclo contra-produtivo.
E cada campo consegue arranjar o seu exemplo mais absurdo possível e as suas justificações.
Como profissionais de saúde devíamos usar estratégias globais de proteção e segurança que sejam responsáveis e não discuti-las e argumentá-las ad absurdum.
Pensamentos finais sobre assepsia na acupuntura
Em 2009 publiquei o meu primeiro artigo a falar sobre os problemas relacionados com assepsia na acupuntura e a defender o uso de luvas e outras práticas mais responsáveis.
Em 2012 a Ordem dos Médicos publicou o manual de boas práticas em Acupuntura Médica com uma adenda envolvendo o uso de luvas na acupuntura.
Em 2017 a maioria dos acupuntores não usam luvas e defendem a racionalização de argumentos idiotas.
Ainda não existe nenhuma escola onde o uso de luvas seja obrigatória e ensinada abertamente como uma medida importante de proteção (algumas escolas permitem aos alunos usar luvas e outras chegam a proibir).
Não existe um único documento público de nenhuma associação do setor a defender o uso de luvas ou com normas consensuais sobre assepsia na acupuntura.
Na realidade não existe nenhum documento público a defender nenhuma medida de boas práticas em acupuntura feito por nenhuma escola, associação ou grupos de influência social.
Um número não desprezável de acupuntores consideram o uso de luvas como “Má Prática Clinica”.
Numa lição de bom senso e responsabilidade clinica foi escrito pelos médicos acupuntores:
“Assim, face às mais recentes evidências na prática segura em Acupunctura Médica, salientase que:
– a Acupunctura é uma técnica minimamente invasiva, e como tal na introdução de agulhas e sobretudo na sua exteriorização e na hemostase do local de punctura, deverá ser considerada a possibilidade de extravasão de sangue e fluidos corporais potencialmente infecciosos,
– A eventualidade da existência de soluções de continuidade nas mãos do médico deverá ser sempre ponderada,
– A possibilidade de contágio por vírus de Hepatite B, C e HIV ou outros, deverá ser evitada em qualquer técnica invasiva,
– As luvas constituem o equipamento protector principal na punctura,
– O médico deverá proteger-se do risco de contágio na prática clínica, pela recurso sistemático a luvas. Com esta medida indirectamente há proteção do doente na eventualidade do médico apresentar serología positiva.Como tal a Comissão de Competência em Acupunctura Médica, recomenda que a prática clínica de Acupunctura seja executada com uso sistemático de luvas”(2)
No Us National Library of Medicine pode ler-se:
“Wear gloves every time you will be touching blood, bodily fluids, bodily tissues, mucous membranes, or broken skin. You should wear gloves for this sort of contact, even if a patient seems healthy and has no signs of any germs.” (3)
E é só isto que precisamos: bom senso e responsabilidade clinica.
Notas Bibliográficas
(1) http://www.who.int/gpsc/5may/Glove_Use_Information_Leaflet.pdf
(2) https://www.ordemdosmedicos.pt/?lop=conteudo&op=2f37d10131f2a483a8dd005b3d14b0d9&id=799de6d3dae4c924142cf245a1d7f703
(3) https://medlineplus.gov/ency/patientinstructions/000452.htm