Cronoacupuntura: pensar um modelo ultrapassado

Cronoacupuntura como se entende é uma forma de acupuntura adaptada ao tempo.

Existem várias formas de cronoacupuntura: pode-se adaptar o tratamento de acordo com as estações do ano ou mesmo horas do dia.

Vê-se o paciente como inserido num determinado ecossistema e adapta-se esse tratamento às variações desse ecossistema e à forma como essas variações, supostamente, afetam o organismo.

Até aqui tudo bem. É a clássica perspetiva ecológica da medicina chinesa (muitas vezes confundida com uma visão holística). E até certo ponto tem alguma razão de existir.

Existem doenças que estão associadas a alturas do ano, período menstrual ou mesmo horas do dia. A própria natureza disponibiliza diferentes alimentos e plantas medicinais consoante a altura do ano.

O que está aqui em causa não é se a perspetiva ecológica está errada mas se a cronoacupuntura é uma terapêutica válida quando pensada ao longo do tempo.

Cronoacupuntura: o seu inicio no tempo

O conceito de cronoacupuntura está intimamente ligado ao conceito de microcosmos e macrocosmos que é a base do pensamento cultural chinês.

De acordo com esse conceito as mesmas regras que governam o cosmos são as mesmas que governam a saúde humana, e consequentemente as ações humanas.

Isto é relevante a ponto do conceito de saúde em medicina chinesa estar relacionado com a noção de “violação da norma”. Ou seja, a doença surge quando se violam as leis do macrocosmos.

Esta noção de “violação da norma” não é uma noção desenvolvida somente a pensar na saúde humana.

Ela começa, e é na sua essência, uma afirmação política. Uma forma dos imperadores manterem os súbditos sob controlo.

Existem leis e tanto a sociedade como a saúde humana adoecem ao não seguir essas leis.

Há umas largas centenas de anos esta noção era inconfundível: devemos fazer aquilo que o imperador e a sua corte mandam fazer.

A saúde estava intimamente vinculada à necessidade de poder das elites dominantes.

Cronoacupuntura e ausência de raciocínio clínico

Podemos inventar todos as formas de cronoacupuntura.

É possível pegar nos 5 pontos shu e encontrar pontos de tonificação e dispersão. É possível variar esses pontos consoante as alturas do ano e as horas do dia.

É possível juntar teorias diferentes e aplicar essas teorias numa dimensão mais física (tratamento da dor) ou emocional (tratamento da depressão).

Mas tem lógica pensar que vou usar o 3F a determinada hora do dia e o 4F a outra hora quando o que desejo tratar é uma tendinite no supra-espinhoso?

A forma como adquirimos todos os conceitos de medicina chinesa como verdades absolutas e os desenvolvemos a níveis clinicamente irrelevantes faz-nos pegar numa ferramente útil como a agulha de acupuntura e torná-la na maior inutilidade clinica possível.

Vamos pensar um pouco: se existe uma tendinite, então o fígado deve estar afetado, pois o fígado governa os tendões. Logo tenho de tratar o fígado. Vejo o pulso e a língua (que não vão dar nenhuma informação útil na tendinite do supraespinhoso) e chegamos à conclusão que existe um vazio de sangue do fígado.

Se existe um vazio de sangue do fígado tenho de usar o ponto de tonificação do fígado que é o 8F. Mas lembrem-se que eu agora decidi fazer cronoacupuntura.

O meu raciocínio seguinte vai ser: em que altura do ano me encontro? É inverno? Primavera? Verão?

Porque consoante a altura do ano eu devo usar pontos diferentes.

Logo se o paciente tiver a tendinite por vazio de sangue do Fígado no Inverno eu devo usar o ponto 4F, na Primavera o ponto 8F e no Verão o ponto 1F.

E no final deste raciocínio todo eu não reparei que:

1 – usei conceitos vagos como “o fígado regula os tendões” e adaptei-o a uma situação clinica especifica (tendinite do supraespinhoso) sem saber se o posso fazer,

2 – olhei para sinais clínicos completamente irrelevantes (língua e pulso),

3 – não efetuei testes biomecânicos e análise de miologia funcional da área afetada e

4 – pensei em selecionar pontos de acupuntura na perna (e variações inúteis de acordo com as estações do ano) sem saber como se trata uma tendinite com acupuntura.

Conclusão sobre ausência de raciocínio clínico na cronoacupuntura

Tem lógica, em pleno século XXI, com todos os conhecimentos anátomo-fisiológicos que existem perdermos tempo com tratamentos de cronoacupuntura desfasados de qualquer análise clínica minimamente avançada?

Tem lógica saber, enquanto profissional, que os seus protocolos de acupuntura estão a ser definidos pelo desejo ancestral de uma classe política morta em dominar os seu súbditos e não pelas reais necessidades clínicas do seu paciente?

O leitor, enquanto profissional, deve escolher o tipo de prática clinica que deseja praticar. Mas devemos ter a noção que só existe uma forma de desenvolvermos uma classe de profissionais de saúde séria e credível. E não é com cronoacupuntura.