Dualidade de critérios: entre os medicamentos e a fitoterapia
TABELA DE CONTEÚDOS
Uma das críticas que se fazem ao uso de suplementos, em especial da farmacopeia tradicional, é que não se regem pelos mesmos cuidados científicos dos medicamentos.
Para um medicamento sair para o mercado é necessário passar uma bateria de estudos científicos caros e demorados e é obrigado a ser comercializado com uma bula que refere os efeitos secundários, cuidados a ter com a sua conservação ou modo de consumo, etc…
Por outro lado, a fitoterapia tradicional pode ser vendida sem qualquer fiscalização de qualidade, sem os estudos complexos que se exigem aos medicamentos e com os slogans auto-alimentados que “é natural e não faz mal”.
Entre o químico cercado de efeitos secundários nefastos ou a planta “natural” (e inocente…) que só faz bem e não pode fazer mal a escolha não é difícil de fazer.
Entre o conselho do médico corrompido pela ganância da indústria farmacêutica ou o terapeuta natural, perseguido pelo capitalismo doente da sociedade atual, e que só usa métodos naturais para nos ajudar a integrar o nosso bem estar na natureza circundante… a escolha pode não ser difícil de fazer!
Sejam justas ou injustas as imagens coletivas das profissões, as comparações entre terapêuticas ou as diferenças ideológico-filosóficas, não resta a dúvida que se forma uma tapeçaria social complexa onde ciência, ideologia e política se misturam originando críticas e conflitos.
No final ficam as dúvidas: Serão os medicamentos o inimigo público vendido por muitos terapeutas ou a fitoterapia a inutilidade irresponsável propagada por muitos céticos?
…Conversa com uma doente…
Doente: eu prefiro métodos naturais, não gosto de químicos
Eu: as plantas tem químicos… donde acha que vem muitos medicamentos?
Doente: pois… mas as plantas são naturais, não fazem mal
Eu: como é que acha que mataram o Sócrates?
Entre a certeza dos estudos e a fundamentação científica
Uma crítica comum contra a fitoterapia é que é prescrita sem lhe ser exigido os mesmos cuidados que se exigem à medicação ocidental. Parte dessa crítica assenta na falta de estudos científicos que fundamentem o uso de fitoterapia no tratamento de muitos problemas.
Fica a questão: os fitoterápicos são prescritos sem qualquer fundamento científico?
A resposta é claramente não. Ao contrário do que se defende existem uma série de estudos a suportar a eficácia de muitos fitoterápicos.
É do conhecimento geral que muitos medicamentos só foram feitos porque a fitoterapia mostrou propriedades terapêuticas.
E existe um conjunto de conhecimentos cada vez mais fundamentado para o uso da fitoterapia. A vários níveis!
3 fontes de comprovação cientifica e clinica da fitoterapia
Em primeiro lugar existe um conjunto de conhecimentos tradicionais relevantes acerca do uso de farmacologia tradicional.
Não tendo um valor tão grande quanto estudos independentes, tem obviamente valor clínico e científico.
Este conhecimento é usado como base de investigação para o desenvolvimento de novos medicamentos por exemplo.
Em segundo lugar existem todo um conjunto de estudos in vivo e in vitro que sustentam o conhecimento tradicional relativamente à eficácia de muitas plantas.
Estudos in vitro, tem demonstrado os mecanismos celulares através dos quais muitas plantas atuam e estes mecanismos enquadram-se nas suas ações clínicas. Estes estudos tem validado a vários níveis o conhecimento tradicional.
Em terceiro lugar existem estudos atuais recorrendo a algoritmos, Inteligência Artificial e redes neurais para análise de grandes dados que estão a avançar o conhecimento de etno-farmacologia como nunca tinha sido possível.
Em 2 estudos recorreu-se a bioinformática para estudar a fórmula tradicional chinesa Si Wu Tang sendo possível observar as proteínas e genes em que a fórmula atua, comprovar que atuam de forma sinérgica possibilitando atuar em diferentes mecanismos associado a amenorreia e mostrando a relação com medicamentos ou drogas experimentais.
Esta fórmula oferece uma abordagem clínica que os medicamentos ocidentais não conseguem oferecer.(1), (2).
Existem problemas com estudos e incertezas em relação à fitoterapia tradicional mas não existe falta de fundamentação científica para o seu uso. Quantos mais estudos se efetuam mais se fundamenta a certeza do seu uso clínico.
Quando os críticos mudam de papel e expõem a sua dualidade de critérios
São necessários estudos científicos: a prescrição off label
Para muitos céticos, a prescrição de fitoterapia é errada porque não tem a aprovação dos estudos científicos.
Os medicamentos ocidentais são prescritos só após aprovação científica, mas depois a prescrição off label é considerada boa prática médica.(3)
De acordo com um artigo sobre Ritalina em crianças (um dos autores é o médico João Júlio Cerqueira, conhecido crítico das TNC) 50% da prescrição em pediatria é off-label.
Lendo as críticas dos céticos relativamente à insegurança dos métodos de produção de fitoterápicos e à falta de estudos científicos nunca se pensaria que poderiam defender a prescrição off label, especialmente quando falamos de medicamentos aos quais existem efeitos secundários comprovados muito mais severos que na fitoterapia.
No entanto, tal como os autores do artigo escrevem:
“Se nos limitássemos a seguir o que está na bula do medicamento, as crianças seriam altamente prejudicadas”
Existem diferenças entre a fitoterapia e medicamentos.
Os medicamentos são mais eficazes para situações muito agudas enquanto a farmacopeia tradicional oferece uma abordagem mais diversificada (fundamentada na ação conjunta de vários princípios ativos) que a medicação ocidental não oferece.
Sem dúvida que os riscos de cada uma são diferentes: a fitoterapia tem mais a ver com a qualidade do produto e o medicamento tem mais a ver com os efeitos secundários; etc…
Mas uma coisa é certa, ao contrário do que se quer fazer crer nas críticas à fitoterapia, a prescrição não é nenhuma ciência exata e acabada.
A falta de estudos clínicos em pediatria (por várias razões) não é impeditivo de se usarem medicamentos mas já é impeditivo de se usar fitoterapia porque não tem estudos científicos.
Os benefícios para as crianças são óbvios e defendidos por céticos mas os benefícios da fitoterapia (usada por 80% da população humana) já não.
É necessário fazer prescrição off label porque os medicamentos podem tratar situações que de outro modo não se tratariam mas o mesmo racional já não se pode aplicar à fitoterapia.
É esta dualidade de critérios que tira a validade às críticas de muitos céticos.
A necessidade de regularizar práticas
Apesar de existirem claramente bons fundamentos científicos e clínicos para o uso da fitoterapia e, apesar da dualidade de critérios usados por muitos céticos, é certo que existe a necessidade de normalizar e regularizar a produção, transporte e venda de fitoterapia.
Certamente que existem uma série de problemas associados com a prescrição de produtos das farmacopeias tradicionais tais como:
1 – Discrepância dos níveis de alimentação de populações alvo,
2 – Acesso a bons cuidados de saúde,
3 – Impacto ambiental,
4 – Alteração do perfil bioquímico por práticas de cultivo intensivo,
5 – Violação de direitos humanos,
6 – Uso abusivo de espécies em vias de extinção,
7 – Crueldade contra animais, etc… (4).
No entanto também existem empresas que trabalham para garantir a melhor qualidade dos seus fitoterápicos (5) e os poderes legislativos começam a exigir maior regulamentação e controlo do que é vendido ao público.
A fitoterapia deveria vir acompanhada de bula onde se explicaria a diferença para medicamentos convencionais, efeitos terapêuticos, efeitos secundários, importância de falar com o médico, riscos de interações farmacinéticas, etc…
A Europa tem feito avanços em relação a uma melhor fiscalização e regulação destes suplementos, um trabalho que deveria ter continuação no futuro.
Dualidade de critérios: aplicar a razão do outro
Os 3 parágrafos que abordam a prescrição off label, no artigo sobre ritalina, podem ser usados, na perfeição para defender o uso de fitoterapia.
Na realidade os argumentos a favor da prescrição off label são os mesmos usados contra os críticos da fitoterapia.
1 – admite-se a falta de estudos por vários motivos (sendo a falta de interesse da indústria farmacêutica o mais mencionado);
2 – existe uma grande franja da população mundial que precisa de tratamentos para os quais há pouca investigação farmacológica, se nos limitássemos a seguir o que é aconselhado pelas bulas, os doentes ficariam muito prejudicados,
3 – não significa que a prescrição de fitoterápicos seja má prática clínica – significa somente que temos de trabalhar com a informação disponível (prescrições tradicionais, estudos in vivo e in vitro, associação dos mecanismos neurofisiológicos com as indicações clinicas, estudos de redes neurais, análise imediata da resposta do apciente aos tratamentos, etc…)
4 – Não é má prática clinica, não é prescrição indevida, significa que não temos toda a informação disponível cabendo aos profissionais da área decidir se medicam.
5 – Esta é a realidade da fitoterapia que os críticos não compreendem.
Conclusão sobre dualidade de critérios
Os medicamentos tem imensos efeitos secundários. Muitas vezes estamos a tratar um sintoma e a provocar outro que depois vai precisar de um medicamento diferente.
Por vezes, são prescritos tantos medicamentos que fica difícil perceber possíveis interações farmacocinéticas ou compreender quais os sintomas do paciente que são característicos do quadro clínico ou que são simplesmente efeitos secundários.
E muitas vezes são prescritos de forma descuidada ou quando não há provas de que possa ser eficaz (prescrição off label, medicamentos não comparticipados, etc…).
Mas os medicamentos são essenciais e quaisquer perigos ou erros que existam eles são suplantados pelos claros benefícios clínicos. O exemplo da prescrição em pediatria prova isso mesmo.
Por outro lado, muitas fórmulas patenteadas de farmacopeias tradicionais tem menos efeitos secundários mas são menos aplicadas em situações de urgência.
Muitos fitoterápicos são afetados por técnicas de produção que destroem o seu potencial clínico ou sujeitam os doentes a outros perigos (contaminação com metais pesados, por exemplo).
O seu efeito fisiológico depende da ação conjunta de vários princípios ativos o que os pode tornar menos eficazes em situações agudas mas mais eficazes em muitas outras situações.
Muitas vezes são prescritos de forma descuidada e são publicitados como “milagrosos” sem na realidade serem assim tão eficazes.
Mas a fitoterapia tem sido essencial para 80% da população mundial e quaisquer perigos que existam tem sido compensados pelos seus benefícios.
Abandonar a dualidade de critérios e as barreiras ideológicas
Se em vez de olharmos para estas questões sobre uma perspetiva de classe profissional e olharmos sobre uma perspetiva clinica e bioquímica podemos observar que existem abordagens de integração com grande potencial.
O potencial de ação em situações mais severas dos medicamentos (baseados num principio ativo) com a ação multifatorial da fitoterapia pode permitir obter melhores resultados clínicos com menos efeitos secundários.
O acompanhamento médico com análises clínicas, o estudo dos dados clínicos combinados sobre a reação dos pacientes, o conhecimento de farmacopeia tradicional para prescrição, o estudo de potenciais interações farmacocinéticas e farmacodinâmicas, etc… seriam essenciais para este tipo de trabalho.
Ou então podemos continuar a confundir ciência e medicina/terapia com interesses profissionais e egos!
Referências Bibliográficas
(3) https://www.scimed.pt/geral/vamos-falar-a-serio-de-ritalina-e-perturbacao-de-hiperatividade-e-defice-de-atencao/?fbclid=IwAR3LqBC6G5ET6N46K0B2g4UcWXHWTa586RBSi5mAcW47t64NulJtH9XaWNk
(4) https://nunolemos.com.pt/farmacologia-tradicional/ (5) https://nunolemos.com.pt/prescricao-fitoterapia/