Desafios éticos e científicos: do laboratório para a clinica
TABELA DE CONTEÚDOS
Nos últimos anos têm surgido alguns artigos de céticos, tanto na imprensa nacional como nas redes sociais, a criticar a acupuntura, osteopatia e outras áreas.
Como profissionais que acreditam no seu trabalho e pessoas que acreditam no seu profissionalismo precisamos confrontar os críticos ao mesmo tempo que sujeitamos a nossa prática clínica a um escrutínio público transparente e informado.
Pessoalmente sinto-me pressionado por dois campos distintos.
Por um lado leio as críticas de céticos da moda que fazem uma análise superficial, tendenciosa e incompetente de muitos assuntos e por outro vejo uma série de colegas com práticas e crenças que alimentam essas críticas.
No meio existem uma série de profissionais de saúde com altos níveis de formação científica e extrema dedicação á profissão que não se revem em nenhum destes campos.
Esses profissionais encontram-se divididos por interesses profissionais, experiências diferentes, etc…
Mas todos podem usufruir de partilha de ideias e discussão acerca da importância ética do placebo e de tratamentos validados pela evidência no dia a dia.
As próximas linhas são reflexões que faço acerca da natureza das terapias manuais.
Falo em terapias manuais e englobo aqui várias profissões diferentes porque a natureza do problema é idêntico para todos, desde fisioterapeutas a psicólogos, sem esquecer acupuntores (e não, a homeopatia não vai estar incluída neste artigo).
Entre a clinica diária e a evidência dos céticos
As críticas de muitos céticos a muitas terapias manuais baseiam-se no problema da validação baseada na evidência e do placebo.
A ideia base é que um tratamento só deverá ser feito, em qualquer condição, se tiver validação por estudos clínicos.
Apesar de compreender a importância deste pontos e vista para tratamentos comparticipados, acredito que não seja absoluto quando falamos em tratamentos não comparticipados.
Há vários problemas pois:
1 – assume-se que a evidência reina quando existem correntes de pensamento que defendem que a base deve ser uma terapia baseada na ciência e não somente na evidência (a medicina baseada na evidência tem apresentado problemas);
2 – critica-se exemplos extremos (esoterismos na acupuntura, homeopatia, etc…) e depois generaliza-se de forma a ir contra a própria evidência;
3 – faz-se uma abordagem muito superficial da literatura científica e dos problemas de investigação.
Nas próximas linhas vamos falar da importância da evidência na forma de trabalhar de muitos terapeutas, no privado, no dia a dia (outros problemas serão tratados noutros artigos), de acordo com a natureza da terapia e valores dos terapeutas.
Podemos colocar vários problemas que existem entre medicina baseada na evidência e a nossa clinica diária.
Quando a melhor evidência não é eficaz
Para resolver estes desafios éticos, nada melhor, que uma viagem imaginária a muitas situações reais.
Imagine que recebeu um doente com lombalgia a quem já foram feitos todos os tratamentos preconizados pela melhor evidência cientifica nas melhores instituições de saúde… sem resultado.
Aplicamos os mesmos tratamentos ou pensamos noutra abordagem?
Suponhamos que estamos a tratar um paciente diagnosticado com lombalgia irradiante.
Neste paciente aplicamos os tratamentos base que sabemos funcionar melhor e que a evidência sustenta. Não funcionou. Como procedemos?
Continuamos a prescrever os mesmos tratamentos vezes sem conta (como acontece em muitos serviços públicos de fisioterapia) ou pensamos em alternativas?
Podem essas alternativas ser terapias que conhecemos e sabemos que não estão totalmente validadas pela evidência?
Recebemos um paciente com dor de estômago que os médicos não conseguem tratar.
Já tratámos um paciente no passado com sintomas semelhantes (e também história clínica) usando técnicas fasciais.
Posso esquecer a falta de evidência sobre esta técnica e aplicar somente os conhecimentos da minha evidência pessoal?
Até que ponto a nossa evidência pessoal deve ser desvalorizada face às críticas dos céticos?
Entre o conselho médico e a minha experiência profissional
Um paciente recorre à clinica com diagnóstico médico de túnel cárpico.
Devo aconselhar cirurgia, tal como o médico preconiza baseado na evidência, ou devo focar-me no meu diagnóstico, fazer uma análise funcional das interfaces anatómicas que podem afetar o nervo mediano e tratar a partir dessa análise?
Devo recusar aplicar uma terapêutica que não está 100% confirmada pela evidência apesar de ver os meus doentes melhorarem de dia para dia com ela?
Como vai a minha carreira profissional cimentar se não consigo tratar esses doentes?
Questões existenciais sobre placebo na comunicação com o paciente
E como devo proceder em relação ao efeito placebo?
Devo procurar uma prática totalmente isenta de efeito placebo e somente baseada na evidência?
Ou o efeito placebo é tão inerente às nossas profissões que é essencial para a nossa prática clinica?
Devo ser antipático para o doente porque a simpatia aumenta o efeito placebo?
Não devo falar da minha profissão de forma credível porque isso aumenta o placebo da intervenção preconizada?
Qual o nível de dedicação que devo mostrar no diagnóstico e aplicação terapêutica sabendo que o “teatro” associado a intervenções mais complexas aumenta o placebo?
Do placebo dos estudos para a prática clinica
As características do placebo indicam que ele é relevante para os terapeutas manuais.
E muitas vezes, difícil de definir e virtualmente impossível de eliminar.
O placebo insere-se na personalidade do terapeuta, na forma como comunica, na forma como trata o paciente, na forma como explica os tratamentos, etc…
Somente a presença do terapeuta implica a presença de placebo.
A natureza da terapia manual e o teatro do placebo
Nas terapias manuais o contacto muito próximo entre terapeuta-doente potencializa esse efeito placebo.
Uma crítica que ouço nos doentes está na falta de toque médico quando referem problemas físicos como dor.
Mas quando vêm ao osteopata é-lhes pedido que façam determinados movimentos, são feitos movimentos passivos, são estudadas limitações articulares, é feita palpação, são pedidos testes musculares, etc…
Ou seja, um conjunto de estratégias que são essenciais para a prática clinica, são cientificamente validadas mas estão totalmente impregnadas de efeito placebo.
As técnicas harmónicas são importantes no tratamento da dor mas toda a aplicação da técnica tem placebo associado.
Os testes musculares são essenciais para se compreender o quadro clinico mas também dão credibilidade à nossa intervenção (especialmente em doentes que sentem ser descurados porque os médicos mal lhes tocam) que é uma componente do placebo.
Sem dúvida que tanto os testes musculares como diferentes tipos de punção aumentam o “teatro” que está associado ao placebo.
Entre a dose eficaz e o placebo
Numa fase inicial de tratamentos de acupuntura prefiro fazer 2 tratamentos semanais.
A acupuntura tem efeito cumulativo e quanto mais se fizer inicialmente mais resultados observamos.
Isto faz parte daquilo que defino como dose mais eficaz da acupuntura (a dose não é definida somente pelo número de agulhas ou o tempo que ficam mas também pelo número de consultas).
No entanto o estudo do efeito placebo indica que um tratamento placebo é mais eficaz quanto mais vezes se fizer.
Como diferenciar, então a dose eficaz do efeito placebo?
O placebo da comunicação
Como comunicar com o doente?
Que estratégias devemos usar?
Cada vez mais se dá atenção a técnicas de comunicação como a PNL (Programação Neuro-linguistica).
Mas muitos céticos vêm isto como uma fraude sem sustentação científica.
Programação Neuro-Línguistica (PNL) e Hipnose Conversacional
Um fisioterapeuta que aplique PNL para consciencializar o doente da necessidade de hábitos de vida está a usar placebo para enganar o doente ou a tentar ser uma força positiva e relevante para o futuro desse paciente?
E como separar uma abordagem comunicativa com propósito construtivo de uma qualquer forma de IURD disfarçada de coaching?
Se a PNL é simplesmente placebo deverá ser usada? Será ético?
É eticamente preferível eliminar completamente este tipo de comunicação com o paciente ou tentar ser uma força construtiva e positiva na sua vida?
Para mim estratégias de comunicação como a hipnose conversacional são importantes, especialmente quando chamo a atenção dos pacientes para a necessidade de fazerem alterações relevantes para o seu bem estar.
Mas como conseguimos definir uma fronteira, perceptível ao doente, entre esta abordagem e o uso de PNL ou técnicas de efeito placebo para simplesmente enganar esse doente?
A simpatia dos terapeutas e a falta de comunicação dos médicos
Muitos médicos pretendem desvalorizar a acupuntura e a osteopatia com o argumento que estes terapeutas são “simpáticos”, sabem falar e sabem ouvir o paciente.
Ao mesmo tempo uma grande percentagem de pacientes refere que não gosta de falar com os médicos e que não se sentem ouvidos.
Deveriam os médicos desenvolver melhores capacidades comunicativas, aprimorar uma intervenção mais humana, focada nos valores e história do paciente?
E se, para tal, acabassem por usar muitas estratégias comunicativas que os psicólogos, fisioterapeutas, osteopatas e acupuntores procuram desenvolver?
Da certeza ciêntífica aos desafios éticos
Devemos somente aplicar tratamentos comprovados cientificamente e tentar eliminar toda a componente placebo ou devemos tentar integrar as duas na nossa abordagem?
O facilitismo ideológico indica que devemos focar-nos na comprovação científica e eliminar o placebo, o interesse político diz que os acupuntores e os osteopatas são uma fraude porque fazem placebo mas qualquer médico que só faça placebo é um excelente médico e a realidade clinica impõe o placebo como parte integrante do tratamento.
Isto é válido para fisioterapeutas, fisiologistas de exercício, acupuntores, osteopatas, psicólogos, etc…
Existem uma série de componentes do placebo (forma como apresentamos as nossas terapias, forma como comunicamos com os doentes, etc…) que são essenciais para o sucesso clinico.
E no privado, quando procuramos o melhor sucesso clínico para fazermos nome, estas ferramentas impõem-se, mesmo que de forma inconsciente.
Questões sobre o uso ético do placebo e o conhecimento que define a sua ação
Temos aqui alguns dilemas: poderemos usar o placebo como arma eficaz somente com terapias que sejam, incontestavelmente validadas, pela evidência ou podemos usar esse placebo em terapias que são mais discutiveis?
Na medida que usamos esse placebo e ele é importante para o nosso sucesso clinico profissional, onde marcamos a fronteira entre tratamentos predominantemente placebo ou tratamentos predominantemente baseados na evidência?
Qual o valor que devemos dar aos estudos científicos quando o modelo de investigação preconizado não é aquele que melhor se adapta às terapêuticas aplicadas?
Mas podemos sequer pensar numa terapia válida sem comprovação pela evidência?
Da necessidade clinica à história… sem estudos clínicos
A maioria dos tratamentos que surgiram em muitas terapias manuais (osteopatia, fisioterapia, fisiologia, acupuntura, etc…) não foram pensados, estudados meticulosamente em laboratório com estudos pré-clinico, sustentados na evidência incontestável de estudos clinicos e depois implementados em abordagens padronizadas.
Eles surgem da necessidade diária que os terapeutas tem de encontrar alívio para as queixas dos seus pacientes.
Pacientes esses que não responderam aos tratamentos “oficiais”.
Não é por acaso que a maioria dos fisioterapeutas que tem clinica própria oferecem tratamentos de acupuntura e osteopatia.
Sem essas técnicas eles não são competitivos.
Desde as técnicas harmónicas de Lederman, Método de Busquet, acupuntura neuro-funcional, POLD, osteopatia pediátrica, Método de Rolf, acupuntura ecoguiada, terapia postural, etc…
Da necessidade clinica à ignorância dos céticos
Todas estas técnicas surgem da necessidade de tratar sintomas que não foram tratados antes, de oferecer novas abordagens mais eficazes. De arranjar novas soluções.
Na maioria das vezes que estas técnicas conseguem comprovação científica elas já são usadas amplamente por uma classe, ou várias, do mundo das terapias manuais.
Mas quando olhamos para os problemas éticos colocados por muitos céticos vemos que esta realidade nunca é discutida.
Existe uma inexperiência clinica, uma ignorância clara por parte de muitos céticos acerca da história, natureza e valores das terapias manuais.
Existe uma redução ao absurdo de uma análise superficial de alguns estudos científicos escolhidos que se torna contra-producente.
No entanto, devemos levantar várias questões pois existem problemas.
Questões éticas para quem gosta de pensar fora da caixa
Olhando para o desenvolvimento destas técnicas notamos que, no privado, muitas vezes os terapeutas são obrigados a inovar, a sair da caixa, a pensar em novas soluções.
Isto traz variedade e sucesso clinico mas ao custo de se aplicarem tratamentos que não são validados pela evidência e muitas vezes nem sequer eficazes.
Onde então colocar a fronteira entre inovar e enganar o paciente?
Entre garantir que o terapeuta paga pelos tratamentos mais eficazes ou pelas inovações mais inúteis?
O doente paga por uma intervenção eficaz ou por um profissional multifacetado capaz de analisar o problema de diferentes formas e arranjar várias soluções possíveis?
A partir do momento que uma intervenção não tem sucesso pode o terapeuta pegar noutras intervenções até encontrar uma que funcione?
Qual o limite imposto ao terapeuta no número de terapias que pode testar nos seus doentes?
Qual o grau de liberdade para pensar fora da caixa?
Estas áreas não trabalham com procedimentos protocolados.
Na maioria das vezes, as terapias manuais, como praticadas no privado, tem diagnóstico próprio funcional que não se enquadra no contexto de doenças vs tratamento padronizado tal como defendido por muitos céticos.
Enquadram-se numa realidade clinica que tenta encontrar um ponto de equilíbrio entre diferentes fontes de pressão como sejam
1 – a medicina baseada na evidência e na ciência;
2 – as particularidades do paciente que afetam a entrega das técnicas terapêuticas;
3 – a necessidade de inovar e tratar queixas que a medicina “convencional” não tratou;
4 – ser capaz de usar espírito crítico fundamentado em conhecimentos anatómicos e científicos, etc…
Regra geral é a própria comunidade que faz a seleção das melhores terapias.
As terapêuticas escolhidas são aplicadas não porque tem estudos cientificos a suportá-las mas porque a maioria da comunidade terapêutica as aceita com base na sua experiência partilhada.
Auriculoterapia
Um exemplo é da auriculoterapia.
Temos a versão noguier com centenas de pontos e uma série de variações novas que foram aceites pelos fisioterapeutas e de seguida rejeitadas.
Mas a auriculoterapia fundamentada no sistema nervoso encontra-se muito desenvolvida e amplamente aceite nos EUA, por exemplo e na acupuntura neurofuncional.
Ou seja a vertente da acupuntura mais tradicionalista e esotérica foi amplamente aceite pela comunidade de acupuntores cujas crenças são mais esotéricas.
Ao mesmo tempo essa vertente foi repudiada pelos fisioterapeutas (basta ver como os cursos de auriculoterapia para fisoterapeutas morreram com a mesma facilidade com que nasceram) enquanto se aceita mais a vertente neurofisiológica.
A experiência, valores e conhecimentos partilhados por uma classe profissional é importante para definir as terapias que ela aceita.
Mas este é um ponto que também tem as suas fraquezas como demonstra o apego excessivo a terapias inúteis por muitos terapeutas das Terapêuticas Não Convencionais (TNC).
Conclusão sobre desafios éticos e científicos em terapias manuais
Existem uma série de dilemas que se colocam a muitos profissionais de saúde que usam terapias dificeis de distinguir do placebo na medicina baseada na evidência.
Existem problemas com a formulação de estudos, é real e falta de formação científica e ética de muitos terapeutas e no final é impossível evitar a superficialidade crítica de muitos céticos.
Mas precisamos entrar neste diálogo, partilhar as nossas ideias e defender os pressupostos lógicos nos quais deve assentar um qualquer diálogo que se pretenda construtivo.
A medicina baseada na evidência é algo positivo que deve ser abraçado e desenvolvido. Mas também o é a medicina baseada na ciência.
E aceitar a importância da medicina baseada na evidência, ou o estudo do placebo não nos deve distrair nunca das características próprias das nossas intervenções, da nossa história e valores enquanto terapeutas.
Acima de tudo não nos deve cegar em relação à dificuldade de adaptar críticas simplistas a dilemas complexos da prática clinica.
Como desejamos pensar os nossos estudos científicos?
Fundamentados numa lógica que assenta bem aos medicamentos ou numa lógica que assente melhor à natureza própria das terapias manuais?
Como desejamos aceitar ou renegar a forma como nascem a maioria das nossas terapias?
Ou os diferentes conflitos éticos, técnicos e científicos que se colocam entre as certezas da medicina baseada na evidência e a necessidade clínica do dia a dia?
Esta discussão não tem de ser dominada por céticos de moda ou bruxos anti-sistema.
Tem de ser feita por nós, de forma transparente.
Tem e ser feita entre nós, com outros profissionais, com os doentes.