O rei dos placebos e o Imperador dos céticos
TABELA DE CONTEÚDOS
Existe um problema de investigação que é único na acupuntura e que a tornou conhecida como o Rei dos placebos.
Não acontece com nenhum tratamento convencional ou não convencionais e nem acontece com todos os tratamentos de acupuntura.
Mas em determinadas queixas, este fenómeno é recorrente e cria esferas de tensão entre acupuntores, céticos e investigadores.
Segundo parece, a acupuntura “verdadeira” não é melhor do que “acupuntura falsa” e portanto, é um tratamento sem validade.
Mas ao mesmo tempo, é comum tanto a acupuntura “verdadeira” como a “falsa” terem resultados clínicos superiores aos melhores tratamentos convencionais. O termo “Rei dos Placebos” surgiu para explicar estes 2 resultados.
Como é possível que um tratamento não superior ao seu placebo seja superior a tratamentos que combinam o efeito real+placebo na sua eficácia clinica?
Como é possível que o placebo de um tratamento sem validade consiga melhores resultados clinicos que os tratamentos convencionais mais avançados?
Como é possível que um terapeuta sem formação cientifica e a praticar algo que não tem qualquer validade cientifica ou clinica consegue melhores resultados que equipas multidisciplinares de profissionais de saúde com excelentes formações?
Explicar estes dados não é simples, especialmente quando colocam em causa as nossas próprias crenças e o nosso ego.
Num artigo que li recentemente, num blog estrangeiro, o autor, cético, pegava neste problema, e conclui-a:
“The expectation of positive outcome — simple optimism — is a major factor in healing from back pain, probably the greatest. People who believe that they are going to get better, get better.21 And people who receive acupuncture — the real thing or a clever imitation — simply feel better cared for … while conventional therapies simply fail to reassure.”
Para o autor este fenômeno explica-se por uma combinação de 3 fatores:
1 – o desejo de cura do paciente,
2 – a super-capacidade dos acupuntores em assegurar melhorias aos pacientes;
3 – a relação cínica entre doentes e profissionais de saúde convencionais.
O autor não conseguiria ser mais direto em relação aos seus pontos. Vamos abordar cada um destes pontos, relembrando que são partilhados por muitos céticos anti-TNC.
1 – Otimismo: os pacientes melhoram porque querem melhorar
“People who believe that they are going to get better, get better”
Levantemos uma questão semelhante: quando é que os doentes não querem melhorar?
Sabe-se que o otimismo é importante para uma resposta positiva aos tratamentos convencionais ou não convencionais.
Por exemplo, existem estudos a mostrar que o otimismo aumenta a sobrevivência em pacientes com cancro (2). E nem precisam fazer acupuntura.
A questão de fundo é que o otimismo sempre esteve lá presente quando o paciente se tratou com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos ou terapeutas ocupacionais.
Não há razão nenhuma para o otimismo ser mais eficaz com os acupuntores do que com outros profissionais. O autor nunca explica ou prova que o otimismo dos pacientes é maior nos doentes que fazem acupuntura.
Muitos pacientes não recorrem à acupuntura porque tem mais otimismo, mas simplesmente porque a maioria dos tratamentos não funcionaram ou tiveram experiências passadas muito positivas com a acupuntura… o tal rei dos placebos!
2 – os acupuntores são melhores a assegurar os pacientes
“And people who receive acupuncture — the real thing or a clever imitation — simply feel better cared for … while conventional therapies simply fail to reassure… All it really means is that acupuncture makes patients feel more cared for and hopeful than conventional therapies do”
Os profissionais de saude tem formação cientifica superior, aprendem as melhores técnicas terapêuticas disponíveis, tem formação em psicologia de forma a compreender as necessidades dos pacientes e saber comunicar com os mesmos.
Mas depois de toda a formação técnica, cientifica e humana destes profissionais, de toda a ciência e tecnologia disponível existe algo que se consegue sobrepor… o poder de persuasão dos acupuntores.
Afinal o rei dos placebos não é a acupuntura mas sim o acupuntor!
E segundo parece, qualquer analfabeto com uma imitação “inteligente” de acupuntura consegue resultados superiores porque é mais simpático. Porque tem melhores capacidade de persuasão.
E pelos vistos, este fenómeno aplica-se à escala global.
De alguma forma, os acupuntores conseguiram passar o segredo de assegurar aos pacientes que eles vão melhorar e, ao mesmo tempo, mantiveram-na escondida de todos os outros profissionais de saúde convencionais!
Também parece que este super-poder dos acupuntores se aplica à dor mas perde-se completamente nos estudos de fertilização in vitro (3) onde fazer acupuntura ou não fazer nada obtêm exatamente os mesmos resultados.
O que aconteceu ao mojo dos acupuntores? E ao otimismo das doentes que fazem FIV? E à eficácia clinica do rei dos placebos?
3 – Relação cínica com profissionais de saúde
“Patients are cynical about conventional therapies, and with good reason. Believe me! I know — I saw it for many years in my work as a massage therapist. That cynism is why alternative health care professionals have busy practices”
A trilogia Médico-Doente-acupuntor não tem a ver com a relação cinismo com as terapias convencionais mas com a dificuldade de comunicação com o médico, como está bem documentado (4).
Por outro lado, os tratamentos convencionais não se esgotam no médico, pelo contrário.
O modelo biopsicosocial foi criado e desenvolvido pelos enfermeiros antes de ser adotado por algumas terapias alternativas.
O contacto mais próximo, do paciente com outros profissionais de saúde mesmo envolvendo um contacto físico mais próximo ou semelhante à acupuntura (fisioterapia) faz com que a explicação do cinismo não se aplique.
Uma coisa é a comunicação médico-doente, outra é a satisfação que o doente sente com o atendimento dos diferentes profissionais de saúde.
Um estudo efetuado na Universidade de Medicina de Lisboa mostrou claramente que a maioria das pessoas que recorre às terapias complementares está satisfeita com os tratamentos médicos convencionais. (5)
Mais uma vez, a explicação proposta ou não explica nada ou vai claramente contra a melhor informação disponível.
Este ponto entra em choque com a ação desses profissionais de saúde, que cada vez adoptam mais a acupuntura como ferramenta terapêutica no seu arsenal.
Fisioterapeutas e médicos tem sido os profissionais de saúde mais interessados no Rei dos Placebos. E desde que começaram a usar a acupuntura, a sua simpatia melhorou bastante os resultados clínicos.
Pôr em causa a nossa inteligência
Se por um lado, o autor descreve qual é o problema, por outro ele não reconhece que existam outros problemas.
Uma parte do artigo efere explicitamente que só interessa a comparação entre acupuntura “verdadeira” e “falsa” e deixa a entender que a sua comparação é bem feita.
“Real acupuncture versus fake acupuncture: the only contest that matters…. acupuncture — the real thing or a clever imitation…”
Em momento algum os céticos que escrevem estes artigos conseguem colocar em causa algumas simples premissa:
1 – as definições de acupuntura verdadeira e falsa que querem usar não são válidas;
2 – a chamada acupuntura sham é uma mistura de técnicas que não são falsas nem fisiologicamente inertes…
Este problema que se passa com a acupuntura é único.
E tudo parte de um conjunto de premissas que muitos investigadores e outros tantos céticos não estão dispostos a aceitar.
Compreender a mentalidade cética
Existem 2 pontos que se prendem com a fronteira entre um mundo de magia e ciência e outra que parte da experiência com base em medicamentos e que são importantes para se compreender a postura de alguns céticos.
1 – Separar magia e ciência com um ego grande
Ao ler e discutir com muitos céticos fico sempre com a ideia que existe uma relação causal entre aceitar a validade da acupuntura e as explicações mágico-energéticas dos acupuntores ocidentais.
Lembro-me, há uns anos de discutir com um cético sobre acupuntura. Ele estava à espera que eu falasse em “canais energéticos”. Como falei em citoquinas anti-inflamatórias ele deixou de ter argumentos.
Para muitos céticos aceitar a validade clinica da acupuntura significa dar o braço a torcer a um conjunto de crenças que abominam, dominadas por um conjunto de profissionais considerados intelectual e moralmente inferiores.
Os acupuntores são vendedores de banha da cobra, são iletrados, frustrados do ensino secundário que nunca conseguiram ser médicos.
A última coisa que podia acontecer era estes tretólogos terem razão… mesmo que fosse por simples sorte.
Um tipo ultra inteligente, que acabou o secundário com notas excelentes e tirou licenciaturas dificeis fazendo uma carreira académica notória perde um argumento para um parvo iletrado? Um aldrabão sem escrúpulos morais?
Parte do problema da discussão com muitos céticos parte da forma como o ego intervêm na sua luta para proteger um mundo racional dos perigos do fanatismo esotérico.
2 – Medicamentos: a única solução
O modelo de usar um placebo para controlar a experiência com uma molécula ativa é excelente para estudar terapias como os medicamentos da medicina ou da homeopatia.
Esse modelo segue uma série de premissas fundamentais:
1 – clara diferenciação entre molécula ativa e placebo,
2 – placebo fisiologicamente inerte,
3 – paciente e médico devem ser cegos em relação ao procedimento, etc…
No entanto, a maioria destas condições não se consegue aplicar corretamente nos estudos de acupuntura. E o problema complica-se quando se usa uma definição de acupuntura “verdadeira” que está errada.
Mas esse modelo precisa ser repensado na forma como são estudadas muitas das terapias manuais.
A acupuntura coloca problemas na definição de placebo que são dificeis de ultrapassar.
Isto não significa que não se possa pensar em modelos alternativos válidos ou discutir formas mais inteligentes e bem adaptadas de placebo.
Mas fica dificil fazer isto quando o pensamento se foca unicamente num único tipo de solução.
Conclusão sobre o rei dos placebos
As explicações dos céticos para explicar resultados aberrantes, nos estudos clinicos, acabam por se tornar mais aberrantes que os próprios resultados que pretendem explicar.
Não há razão para assumir que explicam realmente os resultados observados e em alguns casos vão contra alguns estudos.
A recusa em analisar algumas premissas base a partir das quais racionalizam todos os seus argumentos impossibilitam a resolução destes problemas.
No passado cunharam a acupuntura como o rei dos placebos para conseguir justificar estes resultados.
No entanto, pela aceitação cada vez maior desta terapia pelos profissionais de saúde, mais parece que se vá tornar no imperador vitalício dos céticos!
Bibliografia sobre o rei dos placebos
1 – https://www.painscience.com/articles/acupuncture-for-pain.php
2 – https://ascopubs.org/doi/abs/10.1200/JCO.2003.10.092
3 – https://www.cochrane.org/CD006920/MENSTR_acupuncture-and-assisted-conception
4 – https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/pon.552
5 – https://www.publico.pt/2013/05/02/sociedade/opiniao/medicinas-alternativas-ou-complementares-1593106