Agulhamento a seco e acupuntura
TABELA DE CONTEÚDOS
Há uns anos, um doente estrangeiro perguntou-me se eu sabia fazer dry needling (agulhamento a seco).
Eu afirmei que era acupuntura e que sabia fazer e ele responde-me que o fisioterapeuta dele tinha referido que aguçamento a seco não é acupuntura. Outro colega referiu-me que um fisioterapeuta amigo lhe tinha dito que o aguçamento a seco era uma técnica de fisioterapia e que só os fisioterapeutas podiam executar!
De acordo com o paciente, o fisioterapeuta tinha referido que acupuntura consiste na inserção de agulhas em pontos de acupuntura. E esta ideia tem sido espalhada por diferentes profissionais, incluindo acupuntores. Nada mais errado!
O agulhamento a seco é uma técnica de acupuntura contemporânea que os fisioterapeutas adotaram.
Agulhamento a seco não é, nem faz parte, das funções tradicionais dos fisioterapeutas e não devem ser estes a definir o que se deve, ou não, entender como acupuntura.
Neste artigo vou apresentar 5 factos pelas quais o agulhamento a seco uma técnica de acupuntura contemporânea (Western Medical Acupuncture).
O que pode diferenciar estas 2 técnicas?
Que tipo de factos ou argumentos se podem usar para se conseguir diferenciar estas 2 nomenclaturas?
Para que serve o agulhamento a seco?
O agulhamento a seco também conhecido como punção seca ou dry needling são técnicas simples, de puntura intramuscular com agulha de acupuntura, usadas no tratamento de dor muscular associada a contraturas.
São técnicas muito usadas no tratamento de Síndrome de dor Miofascial, dor nociplástica, pontos gatilho, etc…
Existem várias técnicas de acupuntura com foco no ventre muscular com estimulação manual ou elétrica no tratamento de pontos gatilho e dor muscular.
A técnica de manipulação de agulha mais usada nos pontos gatilho é derivada de uma técnica tradicional chamada “bicada de pássaro”.
Antes de avançar mais é preciso reter 2 pontos importantes: a técnica mais usada de manipulação de agulha é proveniente da acupuntura tradicional e as indicações clinicas são as mesmas.
Estando cientes destes factos vamos ver alguns argumentos que nos explicam e justificam a razão pela qual não existe diferenças entre agulhamento a seco e acupuntura!
Não é punção molhada
Por definição o agulhamento a seco significa que é inserida uma agulha no corpo a partir da qual não é injetada nenhum líquido.
Ou seja qualquer forma de acupuntura que existe é sempre agulhamento a seco pois não existe a introdução de nenhum líquido.
Na realidade o termo de aguklhamento a seco pode ser usado com 2 significados distintos.
O primeiro mais lato refere-se a uma punção em que não é administrada nenhuma substância. Neste caso pode englobar toda a acupuntura mais técnicas de punção seca que não se enquadrem na acupuntura (uso de agulhas hipodérmicas por exemplo).
O segundo sentido é mais restrito e foca-se no uso e agulha de acupuntura para punção intramuscular (principalmente). Neste caso refere-se a um conjunto de técnicas que se enquadram na acupuntura mas com mais especificidade.
De qualquer forma punção seca é sempre acupuntura.
Os procedimentos e os instrumentos definem a técnica
A acupuntura baseia-se na inserção de agulhas filiformes no corpo.
Esta é uma definição limitada (uma vez que existem outras técnicas associadas e técnicas que não necessitam inserção de agulha no corpo).
Mas, tal como é conhecida no ocidente, a acupuntura foca-se no estímulo de agulhas filiformes no corpo.
Qualquer técnica que insira agulhas de acupuntura no corpo é acupuntura.
Podem dar-lhes outros nomes no sentido de diferenciar as técnicas mas não deixam de ser acupuntura.
Acupuntura elétrica, acupuntura esotérica, agulhamento a seco, eletrólise percutânea, etc… são tudo técnicas (umas mais válidas que outras) de acupuntura.
A acupuntura não se baseia em pontos de acupuntura ou meridianos mas sim num procedimento que manipula uma agulha filiforme e ao qual se podem associar diferentes métodos de raciocínio.
Por isso se chamam agulhas de acupuntura!
Recentemente começaram a surgir rótulos como “agulhas de punção” ou “agulhas de fisioterapia”. No fundo são tudo agulhas de acupuntura às quais se mudaram os nomes por conveniência comercial.
Definições erradas
Um falso argumento, muito usado, pelos fisioterapeutas é que a acupuntura consiste na inserção de agulhas em pontos de acupuntura.
Se pensarmos que a acupuntura consiste na inserção de agulhas filiformes nos pontos de acupuntura, então surge um problema.
Porque existem descritos mais de 4000 pontos. Ou seja, é literalmente impossível encontrar uma zona do corpo que não seja um ponto de acupuntura.
Pela simples lógica seria virtualmente impossível existir qualquer outra técnica que não fosse acupuntura.
Por outro lado na maioria das vezes os pontos gatilho e os pontos de acupuntura sobrepõem-se tornando impossível este tipo de distinção.
Não existe nenhum argumento técnico que consiga justificar esta afirmação que é baseada no total desconhecimento da história e do significado de acupuntura.
A história contra o oportunismo profissional
Historicamente, a ideia que a acupuntura tem de ser feita em pontos de acupuntura está errada e não tem qualquer fundamento.
A primeira tradução de um tratado de acupuntura, no século XVII, não falava de vasos longitudinais (conhecidos erradamente como meridianos) nem pontos de acupuntura porque tinha influências de escolas japonesas que não usavam pontos nem vasos longitudinais.
Ou seja, historicamente sempre houve correntes da pensamento que não usavam pontos de acupuntura, nem conceitos como os vasos longitudinais.
Na realidade quando os chineses começaram a usar acupuntura dificilmente teriam já montado um sistema de meridianos.
Por outro lado as primeiras descrições daquilo que se conhece hoje como pontos gatilho (ou áreas reflexas) foram feitas na China.
E muitas dessas observações foram incluídas no sistema de meridianos.
Esta ideia que a acupuntura tem de ser feita em pontos de acupuntura é historicamente FALSA!
Classificação dos pontos na acupuntura chinesa
Se pegarmos na escola mais tradicionalista de acupuntura chinesa vamos ver que ela classifica 3 tipos de pontos diferentes.
1 – os pontos regulares que tem uma localização especifica e pertencem a um sistema de meridianos;
2 – os pontos extra que tem uma localização especifica mas que não pertencem a nenhum sistema de meridianos;
3 – os pontos ashi que não tem localização especifica e não pertencem a nenhum sistema de meridianos (nesta classificação podem entrar muitos pontos gatilho).
Ou seja, nem as escolas mais tradicionalistas de acupuntura chinesa (e especialmente essas) definem acupuntura feita somente em pontos de acupuntura.
Ao olharmos para a história e literatura antiga da medicina chinesa podemos observar que elas aconselhavam e definiam técnicas terapêuticas onde a acupuntura não era feita em pontos de acupuntura.
Tecnicamente a ideia que a acupuntura se define pela punção em pontos de acupuntura é FALSA!
Os fisioterapeutas e o agulhamento a seco
Fi Mak (nome de redes sociais), um fisioterapeuta muito zangado comigo, uma vez respondeu à minha posição:
“Dar a entender que acupuntura e punção seca são a mesma coisa simplesmente porque se utiliza a agulha de acupuntura em ambas é como dar a entender que um talhante e um médico são a mesma coisa simplesmente porque ambos vestem de branco. A punção seca é uma técnica que se traduz na utilização da agulha como mero instrumento para principios/métodos de Fisioterapia, que em nada têm que ver com acupuntura.”
Esta afirmação envolvendo “métodos da fisioterapia” ou analogias com batas é triste pela ignorância histórica e técnica que demonstra.
Em 1941, Brav e Sigmund, no primeiro artigo a descrever o agulhamento a seco (punção sem administração de medicamento), escreveram:
“The origin of the local and regional injection treatment of low back pain and sciatica dates back to the earliest descriptions of acupuncture’’
Posteriormente Peter Baldry, um dos investigadores mais estudados em Agulhamento a Seco escreveu:
“It is interesting to note that SDN is not some new 20th century discovery. It was first described 2000 years ago in the book Huang Ti Nei Ching where, during the course of discussing the use of moxibustion, it says that if acupuncture is used the depth of the needling should be shallow, with the points employed being called fan ying tien (stimulus and response points), or Ya thung tien (pain-pressure points).11 Such points were clearly comparable to those which Sun Ssu Mo in his book, also published in the 1st century, called ah shih points11 and which I now call ‘jump and shout’ MTrP points.”
Peter Baldry, Superficial vs Deep Dry Needling
Na realidade, durante os anos 70 e 80 nem havia diferenciação entre agulhamento a seco e acupuntura. essa foi uma invenção feita no início do século XXI mais por interesses profissionais do que por evolução técnica.
O agulhamento a seco como existe hoje é derivado de uma combinação de estudos médicos e técnicas terapêuticas da Medicina Chinesa. Não tem nada a ver com “métodos da fisioterapia” nem teve qualquer contribuição da fisioterapia.
Os fisioterapeutas podem e devem beneficiar do mesmo mas isso não significa que detenham o poder para definir a terminologia ou dominar a técnica consoante os seus interesses.
Conclusão sobre agulhamento a seco e acupuntura
Acupuntura baseia-se na manipulação de uma agulha filiforme. A técnica é definida pela instrumento (ou instrumentos para ser mais exato) e não pelo raciocínio subjacente ao mesmo.
O agulhamento a seco insere-se num campo conhecido como Western Medical Acupuncture que se pode traduzir para português como Acupuntura contemporânea.
Podemos pensar em diferentes tipos de argumentos legais ou contextuais mas tecnicamente agulhamento a seco refere-se a um conjunto de técnicas de punção intra-muscular de uma área do conhecimento humano conhecida como acupuntura.
Saudações!
Achei interessante o conteúdo deste artigo.De fato, se nos basearmos na etimologia da palavra (latim acus + pungere = picar com agulha), concordo plenamente: acupuntura e dry needling são sinônimos. No entanto, a fisiopatologia parece-me ser diferente nos dois casos: “circular Qi estagnado” e “desarmar pontos-gatilho”. O primeiro é um conceito energético, o segundo parece ser algo “bio-eletroquímico” (não sei bem o que significa desarmar ponto-gatilho). Levo em consideração também a técnica de inserção da agulha: em MTC -eu pelo menos – insere-se a agulha no espaço intermuscular (o que torna a inserção quase indolor), enquanto no dry needling parece se recomendar inserir agulha ATRAVÉS do músculo até sua face ventral (extremamente doloroso e com elevado risco de produzir hematoma). Sem considerar os motivos políticos (que existem, sem dúvida), ainda assim acredito ser necessário fazer a distinção entre os dois métodos, não pelo instrumento em si, mas pela técnica de inserção e pelo raciocínio fisiopatológico. Já tive a desagradável oportunidade de tratar paciente com dor CAUSADA pelo profissional (não acupunturista) que se valeu do dry needling. Não se trata de uma posição definitiva de minha parte, apenas um ponto de vista, que pode e deve ser debatido com bons argumentos. Estou aberto a este debate. Muito obrigado.
Bom dia
Antes de mais gostaria de explicar algumas confusões que está a fazer:
1 – “circular qi do fígado” não é fisiopatologia nem conceito energético.
O conceito energético simplesmente não tem lógica em medicina chinesa. Isso é uma manipulação de termos chineses por parte de ocidentais que não compreendem cultura chinesa.
Os conceitos chineses de qi do fígado devem ser tratados num contexto particular e nunca como fenómenos fisiopatológicos tal como acontece com as explicações que se dão para mecanismos fisiopatológicos verdadeiros.
2 – as técnicas de manipulação de agulha de acupuntura tradicional não aconselham a inserir-se a agulha até o espaço intermuscular. E isso não torna a acupuntura menos dolorosa. Esta diferenciação não tem lógica em termos de aplicação técnica.
Em primeiro lugar muitos pontos encontram-se em cima de nervos e o estímulo é a nível do nervo e não do músculo. E esta técnica pode ser bastante dolorosa.
Em segundo lugar a punção pode ser muito profunda até ao osso (periosteopuntura) passando podendo a agulha passar por vários músculos.
Em terceiro lugar o tratamento da dor implica a punção em pontos ashi que são pontos de dor e a profundidade pode ser muito variada.
3 – Em relação à diferenciação das técnicas: elas estão diferenciadas.
A punção seca é uma técnica enquadrada em acupuntura contemporânea tal como neuromodulação periférica e outras técnicas.
Mas não deixa de ser acupuntura.
Alguns artigos que eu aconselho a ler para explicar melhor os fundamentos do meu raciocínio:
Artigo focado na explicação de alguns termos chineses e que mostra as razões pelas quais os “conceitos energéticos” são errados.
1 – https://acupunturaemlisboa.pt/energia-qi-chi-medicina-sidrome-energetico/
A acupuntura nunca foi definida pelo raciocínio clinico nem pela técnica de punção (ironicamente as técnicas de punção usadas na punção seca estão descritas na literatura tradicional)
https://acupunturaemlisboa.pt/3-pilares-da-acupuntura/
Também tenho um artigo a abordar a acupuntura contemporânea mas está em remodelação.
Muito obrigado
Nuno obrigado pela tua explicação já estava farto de ouvir essas conversas do fisioterapeutas pseudo acupunctura que nada sabem de fisioterapia e menos de acupuntura . abraço JG