Avançar para o conteúdo
qi chi energia

A medicina energética com uma energia chamada Qi (Chi) 

Como o leitor sabe, a medicina tradicional chinesa, preconiza a existência de canais energéticos onde passa uma energia chamada Qi e que se pode ler como Chi.

Tal como é ensinado em muitas escolas, e ficou escrito na lei portuguesa, a medicina chinesa é uma forma de medicina energética que trata síndromes energéticos.

Neste caso, os pontos de acupuntura são pontos através dos quais se pode manipular e regular as energias dos pacientes de forma a criar homeostase interna.

Esta é a ideia geral que se passa da medicina chinesa e da acupuntura no Ocidente. É a ideia que os acupuntores ocidentais passam e é a ideia que os céticos adoram combater.

Mas surge uma simples questão: 

Esta visão está correta? É a medicina chinesa uma medicina energética? A acupuntura é definida pela punção em pontos de energia?

2 pormenores para nos contextualizar

O vitalismo setecentista

O vitalismo consiste numa filosofia que defende a existência de um impulso, uma força ou uma “energia” que é diferente do conceito usado em ciência, nomeadamente em física (energia cinética e potencial) e que seria responsável pela existência da vida.

Esta abordagem ataca a visão mecanicista do mundo que defende a vida como uma consequência de um processo organizativo de vários sistemas materiais preexistentes.

É a resposta filosófica aos movimentos mais científicos que surgiram em consequência de grandes inovações ao longo da revolução cientifica.

Os ocidentais que defendem a existência de uma “energia vital” são os herdeiros filosóficos dos vitalismo setecentista.

Estes profissionais reduzem a medicina chinesa a uma discussão filosófica do século XVII e tornam o conceito de qi numa encarnação de conceitos filosóficos vitalistas.

Antes de tentar compreender qualquer aspecto mais técnico da linguagem, ou da cultura chinesa, é importante notar que o conceito energético usado pelos terapeutas atuais foi emprestado e uma corrente filosófica ocidental e NUNCA de fontes orientais.

Algumas particularidades da escrita chinesa

Antes de tudo devemos saber que a escrita chinesa tem particularidades que tornam difícil se não impossível a tradução de muitos termos chineses.

Como Jorge Vulibrun escreveu:

«O chinês, principalmente o clássico, apresenta características particulares: não declina por gênero, tempo ou número e as palavras podem cumprir, em função do contexto no qual são usadas, tanto funções verbais quanto de nome, adjetivo etc. Para facilitar a compreensão, as relações gramaticais são indicadas sobretudo pela ordem das palavras, que segue regras bem definidas, e pelo emprego de palavras auxiliares, que sugerem o tempo verbal, dentre outras coisas. Para agravar o problema, o chinês clássico carecia de signos de pontuação, o que tornava muitas vezes difícil dividir um texto em frases e determinar, por exemplo, de quem está se falando (isso não é o resultado de desconhecimento da língua, já que sinólogos importantes discordam sobre aspectos básicos de um texto). Assim, a língua não é apropriada para fazer uma exposição na forma de um argumento racional, mas tem a ginga que só a poesia outorga. Desse modo, os textos clássicos chineses não podem ser “traduzidos”, eles só podem ser “interpretados”.(1)»

Jorge Vilbrun chama a atenção para um facto muito importante:

A tradução está muito dependente do contexto em que o ideograma é expresso e por isso muitos termos não se conseguem traduzir pois o seu significado varia consoante o contexto em que é usado.

Ou seja, traduzindo Qi por energia perde-se a noção do contexto pois o caracter Qi deixa de ser abstrato e funcional e passa a ser concreto.

Várias obras de autores chineses iminentes começam a chamar atenção para este facto.

chi qi energias

Provas que o ideograma 氣 não é energia

A ideia da medicina tradicional chinesa como energética está profundamente enraizada na cultura ocidental.

Há uns anos uma leitora do blogue comentou:

“Tenho pena que não desenvolva mais o assunto uma vez que os chineses usam amplamente o termo energia e desiquilibrio energético”.

Não usam. Na realidade quando olhamos as diversas evidências observamos que estas traduções energéticas nunca são feitas nem suportadas por nenhum tipo de evidência.

qi chi

fonte: https://www.linkedin.com/pulse/evolution-chinese-word-qi-james-chan/?trackingId=mw5gjoOaSW2OzG2VoAcrUg%3D%3D

Estudos históricos

Uma obra histórica muito interessante foi escrita por Elizabeth RochatDe La Avalée intitulado “A Study of Qi in Classical Texts”.

Esta obra está dividida em 3 partes: Introdução com o estudo das origens do caracter 氣; Qi (氣) nos textos filosóficos e Qi (氣) nos textos médicos.

Em momento algum se defende a tradução por Qi (氣) como energia em qualquer tipo de contexto biomédico. O estudo das origens de Qi (氣) mostram claramente que não tem qualquer relevância com qualquer conceito energético ocidental.

A tradução de Qi por energia foi feita pela primeira vez por um Europeu, chamado Soulié de Mourant, no início do século XX, cujos trabalhos se tornaram referência para muitos acupuntures ocidentais. No entanto, Soulié de Morant cometeu vários erros grandes que se perpetuaram até aos nossos dias.

Paul U. Unschuld, historiador, explica bem a sequência de eventos, na sua obra Traditional Chinese Medicine, Heritage and adaptation, num capítulo intitulado “The Creative Reception of Chinese Medicine in the West” (pig. 125):

“Soulié de Morant’s second, and far more problematic legacy, affecting first acupuncture and then TCM in general, is his definition of the concept of qi as “energy.” There is no evidence of a concept of “energy”—either in the strictly physical sense or even in more colloquial senses—anywhere in Chinese medical theory. Many meanings have been associated with qi over the course of time, but to equate qi with “energy” is a European projection. It was nonetheless eagerly accepted in China, as it suggested that TCM was grounded in modern science. This interpretation of qi as energy was initially restricted to a relatively small circle of adherents, primarily in France, until the confluence of two developments in the 1970s: the global energy crisis and the simultaneous opening of China.”

Dicionários de terminologia técnica de MTC

A 2º edição do Practical Dictionary of Chinese Medicina, escrito por Nigel Wiseman e Feng Ye em 1998 foca-se em descrever os principais conceitos de medicina chinesa.

Relativamente ao caracter Qi, nunca o associam com qualquer tipo de tradução energética.

Nas 2 imagens abaixo, retiradas da obra mencionada, o leitor pode confirmar os diferentes significados do caracter Qi.

qi chi

349661693 252558224024835 2438589383202783410 n

Outra obra mais recente, escrita por Xie Zhufan e intitulada “On The Standard Nomenclature of Tradicional Chinese Medicine” não podia ser mais clara.

Sobre a tradução do caracter Chi (氣) ele diz o seguinte:

“In recent decades, energy or vital energy has been used to represent the concept of qi, but it cannot cover all the major fields of the concept, particularly when the Word qi refers to substance”(3).

Não existe obra técnica escrita por chineses sobre terminologia técnica da medicina tradicional chinesa que aceite as crenças energéticas ocidentais.

Sinólogos

Um médico acupunturista, Marcus Vinicus Ferreira, escreveu um texto em 1996 intitulado “Qi e Energia: Tradução, Tradição, Traição”(2) onde expõe as fraquezas da tradução do caracter Qi e as variações que lhe demos ao longo das décadas do século XX.

Estudando os dicionários chineses, observou que em 31 dicionários, somente 1 traduzia Qi como Energia.

Todos os outros apresentavam traduções como ar, atmosfera, espírito, coração, vapor, temperamento, etc…

A quase completa ausência do conceito energético nos 31 dicionários e a grande variação de significados encontrados permite tirar 2 conclusões:

1 – em primeiro lugar, esta tradução é errada na visão dos sinólogos;

2 – em segundo lugar o ideograma 氣 pode tomar imensos significados diferentes que nem sempre se relacionam. Mais uma vez vai depender do contexto. Sempre o contexto.

Sinólogos importantes como J. Needham apontam para a impossibilidade de se traduzir Qi perfeitamente enquanto que M. Granet usa diferentes traduções consoante o contexto em que é usado.

Entre as traduções possíveis encontra-se ar, atmosfera, gás, essência, etc… NUNCA qualquer noção energética.

A comunidade de sinólogos apontam toda na mesma direção.

Edições bilingues das universidades chinesas

As edições bilingue universitárias são relevantes por vários motivos:

1 – são consideradas a melhor compilação de conhecimento atualizado pelos diversos especialistas dessas faculdades e hospitais associados;

2 – são feitas usando equipas de dezenas ou centenas de profissionais desde sinólogos, tradutores, linguistas e especialistas em medicina chinesa.

Nenhuma delas, em nenhum momento defende ou faz a tradução de qi por energia.

A maioria dos livros técnicos de Medicina Chinesa não fala em vazio de energia do rim. Eles descrevem Estagnação de Qi do Fígado, ou Vazio de Qi do Pulmão, ou Vazio de Qi do Rim.

Essas obras traduzem tudo com excepção de alguns termos que não se prestam a traduções como o ideograma 氣.

sistema de meridianos yin da perna ficado baço rim

Tradutores online

Atualmente os tradutores online são extremamente eficazes a fazer traduções.

Anos de investimento em sistemas de software e inteligência artificial e contributos de milhares de internautas com conhecimentos mais avançados em linguistica fazem com que as traduções das línguas mais usadas sejam muito fidedignas.

Assim sendo seria normal traduzir “energia” e “氣” entre chinês e inglês e ver quais as correspondências encontradas.

Comecemos, então, por aquele que é capaz de ser o melhor tradutor disponível no momento presente: Google Translate.

Para “energy” o Google translate apresenta os seguintes caracteres: 能源.

Estes caracteres não têm nada a ver com o ideograma 氣 que aparece traduzido como… gás. Que surpresa.

qi chi energia

Será que estes resultados podem ser comprovados por outro tradutor online?

Decidi procurar no free online language translation.

Traduzi o ideograma 氣 do chinês tradicional para inglês e obtive a tradução gas.

E o termo energy levou aos ideogramas 能量.

O leitor pode reparar que existem pequenas diferenças de dicionário para dicionário. Mas também pode seguramente concluir:

O ideograma para Qi (氣) em nenhum momento é traduzido como energia e este conceito em nenhum momento nos leva ao ideograma 氣.

O significado de qi na medicina chinesa

O ideograma Qi (氣) é composto por 2 partes:

1 – vapor ou movimento de uma substância invisível

2 – bago de arroz indicando uma base material na origem do movimento do substância invisível.

氣 exprime a ideia do movimento de uma substância invisível com uma base material.

Como é amplamente reconhecido essa substância invisível é o ar (gás) e no campo médico este ideograma aplica-se na perfeição à respiração.

Uma base material (músculos, pulmões, corpo) permitem o movimento de uma substância invisível (ar) que é essencial à vida.

Em medicina chinesa o conceito 氣 tem dois significados:

1 – refere-se a substâncias vitais que formam o corpo;

2 – funções fisiológicas das vísceras, órgãos, vasos longitudinais e colaterais.

Qi também apresenta funções como promover ação, metabolismo e transformação. 

No entanto, e atendendo às características linguisticas chinesas este termo não se consegue traduzir.

Muitas vezes o seu significado é tão vago que é necessário associar outros ideogramas para conseguir dar-lhe um significado.

Por isso em medicina chinesa existem uma variedade enorme de ideogramas associados a 氣: xie qi, wei qi, yin qi, etc…

Características do conceito energético para acupuntores ocidentais

Ao longo dos anos e em diversas conversas encontrei uma série de argumentos de acupuntores ocidentais a justificar as suas traduções e crenças energéticas.

O objetivo final é mostrar que o ideograma 氣 está em todo o lado e engloba tudo.

Os diversos argumentos dividem-se em 2 grandes grupos:

1 – manipulação de termos do dia a dia e uso de argumentos filosófico-teológicos de forma a criar um conceito puramente esotérico que existe para além das capacidades da ciência atual.

Este grupo tende a focar-se numa espécie de argumentação filosófica com base em argumentos usados por Nicolau de Casa e Theillard de Chardin, 2 mentores filosóficos do movimento new age.

Noções como o Qi “é o oposto dos opostos, é tudo o que existe” ou encontra-se em todo o lado foram usadas no passado por Nicolau de Cusa e Theillard de Chardin para descrever Deus.

Este tipo de argumentos eram muito mais comuns nos anos 90 do que são hoje.

2 – manipulação de conceitos científicos tentando apresentar os ideogramas chineses como cientificamente validados.

Este grupo tende a focar-se em analogias simplistas com conceitos físicos de energia e teoria da relatividade.

É comum discutir com terapeutas que usam argumentos de ambas as fontes mencionadas, no entanto na primeira metade do século XXI tem existido uma clara preferência de argumentos do segundo grupo.

meridianobraçosistemacunIMG

Invisível, não medível… logo sobrenatural

«Uma vez que muitos termos da acupunctura, como Qi, não são observáveis estamos no domínio do sobrenatural.»

«Nuno o problema é que a gravidade foi medida, embora ainda não esteja totalmente explicada, a acelaração gravítica é conhecida. O ar pode ser analisado na sua composição, oxigénio, CO2, a sua densidade pode ser medida, até o grau de humidade que contem, etc. Tanto quanto sei o Qi no seu sentido mais abrangente nunca foi medido ou explicado, observado (tirando aquelas auras térmicas ou algo que o valha), nunca foi isolado. Assim como muitos outros fenómenos na MTC»

Estas frases foram escritas há uns anos por uma leitora do blogue em resposta a alguns artigos meus que se focavam nesta temática.

Outros acupuntores com quem discuti estes problemas também, se focavam muito nas 3 componentes: invisível, não medível e sobrenatural.

Em primeiro lugar invisível, logo não é material. 

No entanto existem uma série de conceitos e forças em ciência que são invisíveis: oxigénio, gravidade, força nuclear forte, eletromagnetismo, etc… 

Um dos grande responsáveis pela existência de matéria é uma força invisível chamada gravidade.

Esta componente invisível, em oposição à matéria, é uma das características do pensamento vitalista ocidental.

Em segundo lugar não pode ser medida ao contrário do conceitos físicos de energia em física que é medível.

Na versão new age vitalista medível e palpável são quase sinónimos. E tem de ser pois ao sentir o Qi no corpo o terapeuta está também a palpar.

No entanto são conceitos muito diferentes, por exemplo é possível medir a quantidade de oxigénio na sala mas dificilmente alguém vai palpar o oxigénio.

Nas versões energéticas, o medir e o palpável transmutam-se no ato de sentir. Não se mede o Qi não se consegue tocar o Qi mas consegue sentir-se.

O ponto central é que as máquinas (mecanicismo) e o método redutor cientifico (mais mecanicismo) não tem essa capacidade de sentir, logo…

No entanto, como qualquer pessoa consegue perceber, esta noção de sentir está implícita a um ato de lavagem cerebral. Só sente quem quer acreditar e quem e predispõe a isso.

Sobrenatural porque a ciência não consegue explicar nem analisar este conceito. 

Na versão mais extrema e romantizada deste pensamento o ideograma 氣 é uma qualquer espécie de entidade divina.

Está em todo o lado, existe em todas as coisas, manifesta-se em todas as formas. Uma clara alusão, mesmo que ignorante, à noção divina de Theillard de Chardin, um dos mentores intelectuais do movimento new age.

acupuntura segura neuromodulação periférica

O 氣 na China e a E em Portugal

Qi (氣) Energia
Ideograma que expressa uma ideia: movimento de uma substância invisível com um substrato material. Conceito esotérico vitalista dificilmente descrito pelos seus aderentes
A cultura chinesa associa o “o movimento de uma substância invisível” ao ar. É algo esotérico e trascendente. Algo que apela a crenças esotéricas e religiosas.
Pode ter várias traduções como gás, ar, atmosfera, essência, respiração. Esta última, respiração, seria a mais correcta uma vez que o substrato material (corpo) provoca o movimento de uma substância invísivel (ar). Pode ser traduzido mas dificilmente compreendido e não se refere a ar, atmosfera, respiração ou algo que se assemelhe.
Conceito abstracto cujo significado pode variar em diferentes contextos e com isso definir realidades objectivas. É algo que existe em todo o lado e que não pode ser analisado cientificamente nem medido tecnologicamente mas pode ser sentido… 
Cultura normativa sem qualquer associação com a cultura dualista ocidental. Conceito derivado de uma cultura dualista onde energia (vitalismo) e matéria (mecanicismo) são usadas como descrições rivais da natureza.

Conceito físico de energia

Em física, energia (E) é uma grandeza física necessária para descrever a interação entre dois sistemas físicos. 

Existem dois tipos de energia associados a um sistema físico: a potencial associado à posição e a cinética associada ao movimento.

Ainda se pode falar em energia mecânica que é o somatório de todas as energias cinéticas e potenciais do sistema.

Evidentemente que posso descrever a Ec de diferentes formas: Ec rotacional ou Ec translacional. Mas isto basicamente refere a mesma energia a diferentes movimentos do corpo.

O mesmo se pode dizer acerca da Ep elétrica (que descreve um sistema elétrico) ou elástica que se aplica a um corpo deformado e com propriedades elásticas. Mas é tudo Ep.

Energia cinética (Ec) e potencial (Ep)

Em termos físicos estes conceitos podem ser apresentados da seguinte forma:

Ec=1/2mv2

m significa massa e v significa velocidade. Ou seja a Ec está associada ao movimento e uma partícula.

Ep=mgh

Nesta segunda equação m significa massa, g representa a constante gravitacional e h a altura da partícula. Ou seja a Ep está associada à posição e uma partícula.

Todas as outras formas de energia, no fundo são derivadas destes conceitos base de energia cinética e energia potencial.

energia cinética e potencial

Einstein não fazia acupuntura

Segundo parece Einstein provou que tudo era energia, logo a tradução energética de qi está correta pois mesmo existindo um substrato material no ideograma, a matéria é energia. Logo…

O que Einstein demonstrou foi que a matéria era energia e a energia tinha matéria. Ou seja existe um complexo matéria-energia. No entanto existe um pequeno pormenor.

A famosa equação de Einstein é: E = mc2.

Por outras palavras: E é igual ao produto da massa (M) pelo quadrado da velocidade da luz (c).

Ou se quisermos, a M (massa) é igual á divisão da E pelo quadrado da velocidade da luz.

Existe uma outra particularidade, como um professor de física aplicada uma vez me ensinou a equação deveria ser apresentada da seguinte forma: ∆E = ∆mc2

O triângulo significa variação, ou seja a uma variação da energia está associada uma variação da massa.

Daqui podemos retirar que:

1 – A equação de Einstein refere que a variação de energia e massa está dependente de velocidades muito elevadas.

2 – Não há descrição semelhante a tal coisa em nenhum clássico de medicina chinesa e em nenhum significado de qi se assume como central o quadrado da velocidade da luz.

3 – Esta equação só seria útil e válida para o terapeuta caso este fizesse acupuntura à velocidade da luz!

teoria da relatividade energia massa velocidade da luz

Incoerências lógicas

Neste capítulo vamos criar alguma desafios cognitivos às traduções energéticas ocidentais.

Começamos por pegar nas características de Qi na MTC e aplicá-las no conceito de energia e depois fazemos o contrário.

De seguida vamos usar diferentes traduções de caracteres chineses, sem noção do contexto, como se faz em muitas traduções energéticas para ver o resultado final.

Finalmente vamos traduzir estes caracteres enquanto conceitos relevantes no contexto biomédico chinês e tentar perceber de que forma estas traduções não são adequadas.

Da medicina chinesa para a física clássica

Vamos começar por descrever o conceito de 氣 na medicina chinesa (MTC).

“one refers to vital substances comprising the human body and maintaining its life activities, such as de qi of water and food (food essence), the qi of breathing… and so on. The other refers to the physiological functions of the viscera and bowels, channels and collaterals, such as de qi of the heart, the lung, the spleen… the qi here referred to, is specifically the physiological functions of these viscera and bowels.”[viii]

De acordo com a mesma obra, 氣 ainda tinha as seguintes funções:

“Qi has functions such as: promoting action, warming action, defending action, promoting metabolism and transformation, etc…
It has a movement and diferent classifications that you have mention[ix].”

Se Chi é um qualquer tipo (?) de “energia”, “energia química” ou “energia bio-quimica” então temos de assumir que:

1. O conceito de energia em bio-quimica tem dois significados diferentes.

O primeiro refere-se a substância vitais que formam o corpo e o mantêm em funcionamento.

O segundo significado referente à função fisiológica das vísceras e órgãos, canais e colaterais.

2. A energia tem funções: promove ação, tem função de aquecer, promove metabolismo e transformação.

3. A energia pode ser classificada em várias categorias (além dos seus dois significados): energia nutritiva, energia defensiva, energia patogénica, etc…

Qual a literatura científica de química, bio-química, física ou biologia que apresente estas descrições?

O leitor não consegue encontrar nada que se assemelhe. Pela simples razão que conceitos como “energia nutritiva” ou “energia defensiva” simplesmente não têm lógica em ciência.

A energia não tem funções nem a ciência alguma vez lhe deu algumas pela simples razão que é uma grandeza física necessária para descrever a interação entre dois sistemas físicos.

Da física clássica para a medicina chinesa

Mas talvez o pensamento inverso ajude. Se Chi e energia são a mesma coisa, então, a definição cientifica deve ser aplicável ao ideograma de 氣.

Logo devem existir dois tipos de chi unicamente.

O Chi potencial associado à posição de uma partícula e o Chi cinético associado ao movimento da partícula sendo o Chi mecânico o somatório de todas as formas de Chi.

Qual a obra técnica de medicina chinesa ou o clássico de medicina, filosofia ou política que refere este tipo de conceitos na história chinesa?

Onde e em que século, o ideograma 氣 foi descrito como a associação entre a energia da posição e do movimento de uma partícula?

prescrição de fitoterapia medicina chinesa

Energias positivas e negativas: o cúmulo do ridículo

Energia positiva e negativa costuma ser uma tradução usada para traduzir Yang e Yin.

O ideograma completo é Yin Qi pois Yin é uma forma de Qi. Logo pelas traduções de alguns terapeutas: qi=energia e Yin= negativo, logo…

O problema é que os ideogramas de Yin e Yang possuem uma série de significados possíveis que não se prestam a este tipo de traduções.

Por exemplo yin pode significar negativo, mulher, água frio e num contexto clinico a falta de Yin costuma estar associado a falta de líquidos orgânicos, aumento e calor no corpo com febre e agitação mental.

Ou seja não existe qualquer tipo de tradução energética deste ideograma, mas se isto não é suficiente podemos tentar traduzir com outros significados descontextualizados.

1 – Vazio de yin do pulmão = vazio da energia (qi) da lua (yin) do pulmão. 

2 – Vazio de yang do rim = vazio da atmosfera (qi) do homem (yang) do rim.

Parece ridículo mas não é menos ridículo que as traduções energéticas.

No entanto, para os acupuntores ocidentais o ridículo transformou-se na norma diária.

Traduzir Qi, Yin e Yang enquanto conceitos relevantes na prática clinica

«O que quer dizer em termos concretos e mensuráveis “nutrir o Yin dos Rins”? Este fenómeno foi observado ao microscópio? Na medicina ocidental se lhe falar na coagulação do sangue já estou a falar de algo concreto que pode ser explicado e os intervenientes no processo podem ser isolados e descritos»

Quando digo que um paciente apresenta um Vazio de qi do pulmão não falo em energias sobrenaturais a afetar o pulmão.

Refiro que o paciente apresenta tosse de som fraco que agrava com esforço físico, expetoração fluida e transparente, dispneia, etc…

Uso um conceito abastrato (qi) num contexto (vazio do pulmão) e defino uma realidade objetiva (sintomas descritos).

Quando falo de estagnação de qi do fígado já introduzo esse mesmo conceito abstrato num contexto diferente e com isso defino outra realidade composta por um conjunto de sinais e sintomas clínicos diferenciados.

Nas linhas acima mencionei o ideograma Yin. Yin e Yang são opostos que se podem representar por frio e calor, água e fogo, etc…

Aplicando estes ideogramas num contexto clinico temos que num vazio de yin pode existir:

1 – menos água no organismo: pele e garganta seca, sede, urina escassa e escura;

2 – alteração na componente psicológica: agitação física e psicológica, insónia.

3 – aumento da temperatura: febre, sensação de calor no corpo.

Num vazio de yang, que representa o fogo, vigor, entre outros podemos observar:

1 – aumento de água no organismo: poliria, edema, etc…

2 – alteração na componente psicológica: apatia, falta de vontade em fazer as coisas.

3 – diminuição de temperatura: palidez, frio generalizado.

A medicina tradicional chinesa não se estuda usando um microscópio para tentar observar um ideograma chinês!

Qualquer estudo tem e ser feito através da compreensão do contexto em que o ideograma é aplicado e é perfeitamente possível estudar esses sintomas e a resposta dos mesmos às diferentes terapêuticas.

Os perigos energéticos no dia a dia

Sentir um ideograma numa depressão anatómica

Uma prática muito defendida por alguns acupuntores consiste em sentir a “energia” do ponto de acupuntura e ao longo dos vasos longitudinais aka meridianos

Vamos pensar neste conceito de sentir o Qi no ponto de acupuntura porque o que realmente se propõe é sentir um ideograma que expressa uma ideia abstrata em diferentes depressões na pele.

A incapacidade de alguns terapeutas perceberem que não existe esta fronteira com o ridículo é bem expressa na incapacidade de questionarem as suas práticas.

Faz uns anos, estava eu com uma colega de escola a tratar um doente.

Passado um bocado e farto de ver que ela não parava de andar com o dedo de um lado, no corpo da paciente, decidi perguntar o que ela estava a fazer.

Respondeu-me: “estou a sentir o ponto!”

Ela poderia perguntar:

“como sei que é o ponto certo que estou a sentir?”

“como sei que não existe nenhuma pequena depressão muscular que eu associo com o ponto?”

“como sei que não estou a condicionar a minha mente a acreditar que estou a sentir o ponto?”

Depois da minha colega ter sentido a localização do ponto de acupuntura chamei-a à atenção para o facto de que as medidas usadas estavam erradas e ela nem sequer ter marcado o ponto na região normal dele.

Obviamente perdeu tempo a sentir o ponto na região anatómica errada.

Depois de sentir novamente o ponto, desta vez numa localização anatómica mais próxima decidi levantar algumas questões.

“Quantos pontos existem na perna?” – questionei.

“existe o 36E, 37E….” – respondeu, referindo-se aos pontos regulares que conhecia.

“… como sabes que sentiste o ponto 37E e não nenhum dos outros pontos de acupuntura extra que aí estão localizados?” – perguntei novamente.

“Porque sei que é o ponto 37E!” – respondeu.

“Mas como sabes que é o 37E e não outro ponto?”

“Os pontos extra sentem-se de forma diferente que os pontos regulares!”

“Não estão descritas sensações diferentes para pontos regulares ou extras. Como diferencias essas sensações? O que eu quero saber é como podes demonstrar objectivamente que o ponto é ali!” – comentei.

“Porque eu sei que o ponto é ali.” – respondeu.

dialogar com médicos e evidencia clinica

Regular as energias

Há uns anos, numa clinica escolar, um paciente apresentou um protesto por má prática contra um dos alunos em estágio.

O paciente sentia dor de costas e o aluno achou que em primeiro lugar era necessário “regular as energias” em face do diagnóstico energético.

Após 3 consultas de acupuntura clinica, sem qualquer melhoria o paciente decidiu desistir porque continuavam sem lhe tratar a dor de costas.

A conclusão dos terapeutas que testemunharam o caso? O paciente era “maluco”.

De Cascais vem outra história semelhante.

Uma doente após ter pago 200 euros em 3 consultas teve de ouvir uma história patética sobre como tinha as “energias desreguladas” e que para a tratar era necessário “regular as energias” do corpo.

Para “regular as energias” seria necessário investir mais umas centenas de euros em consultas de acupuntura sem se tratar o que efetivamente, deveria estar a ser tratado.

No Ocidente “regular as energias” é usado como um principio terapêutico de medicina chinesa apesar desta nunca ter definido nada de semelhante.

Passar energia e outras considerações anti-assepsia

“se usas luvas como passas a energia pela agulha?” Esta foi uma pergunta que uma colega me fez antes de me gozar por usar determinadas práticas asséticas em clinica.

Segundo parece, para alguns colegas meus, usar luvas é totalmente errado porque não se consegue passar a energia para a agulha de acupuntura.

Muitos profissionais vivem com o medo de não absorver as energias dos pacientes ou com a necessidade de libertar as energias negativas do tratamento de acupuntura e apresentam um desleixe excepcional na sua própria protecção e na do paciente.

Ventosas não esterilizadas e contacto direto com zonas do corpo que foram puncionadas ou nas quais foi feita ventosaterapia.

A única preocupação destes profissionais era fazer qi gong após a consulta para eliminarem energias negativas.

Algumas escolas no Brasil inclusivamente desaconselhavam desinfetar a pele com álcoolpara não afetar as energias locais .

A fitoterapia trata a nível energético

Algumas escolas ensinam que a matéria médica chinesa não interage com a medicação médica, porque trata dos “desequilíbrios energéticos” do corpo enquanto que a medicação médica trata a nível químico.

Ou seja, as interações farmacocinéticas e farmacodinâmicas que são factos científicos, na realidade não existem para alguns terapeutas.

Atualmente, esta verdade energética começa a tornar-se um incómodativa e muitas escolas preferem fingir que nunca a ensinaram.

O discurso atual resume-se somente a dizer que o uso combinado de fitoterapia e medicamentos é seguro… porque…

Reflexões finais

Quando começamos a analisar as traduções energéticas dos terapeutas ocidentais convêm nunca esquecer 2 factos:

1 – a compreensão do caracter chinês foi feita através das influências da filosofia vitalista;

2 – as traduções foram feitas por pessoas com pouco conhecimento da língua e da cultura chinesa e algumas traduções não só estão erradas como violam por completo o verdadeiro significado dos caracteres chineses.

3 – A linguagem ocidental e a chinesa tem grandes diferenças, pois a primeira é fonética e a segunda pictográfica.

Estas traduções dos acupuntores no Ocidente estão desfasadas de toda a comunidade de sinólogos e especialistas das melhores universidades chinesas.

Sinólogos, tradutores e linguistas, não traduzem o ideograma 氣, sendo que muitos nem o aconselham.

As edições bilingues escritas pelas diversas universidades chinesas desde Beijing a Nanjing não traduzem estes ideogramas.

Só os acupuntores ocidentais aceitam este tipo de traduções e focam-se em 2 grandes grupos de pensamento.

Não há nenhuma descrição do conceitos de energia que se adapte minimamente ao conceito de qi.

Não há nenhum clássico que alguma vez tenha descrito Qi como conceito energético.

Não existe qualquer tipo de sustentação lógica, argumentativa ou técnica que permita fazer a confusão entre estes 2 conceitos.

No final, esta filosofia vitalista representa uma fraqueza intelectual e clinica do terapeuta.

Em primeiro lugar, tem de defender uma posição indefensável com base numa ciência que não aceita mas cujos termos precisa para ser respeitado.

Em segundo lugar acaba com um conjunto e práticas que são irresponsáveis e inúteis sem qualquer capacidade para as questionar.

Referências Bibliográficas

VULIBRUN, Jorge; Uma leitura filosófica de termos chineses usados no I Ching; Revista de Ciências Humanas, EDUFSC, 39: 37-66; 2006

FEI, Li; Yu, Chen S.; Guia Clínico de Ervas e Fórmulas na Medicina Chinesa; Ed. ROCA, 1ª edição, ISBN: 85-7241-140-2, São Paulo, 1996

FERREIRA, Marcus; ; Qi e Energia: Tradução, Tradição, Traição, III Congresso da Sociedade Médica Brasileira de Acupuntura, 1996

ZHUFAN, Xie; On The Nomenclature of Traditional Chinese Medicine; Foreign Languages Press Beijing, ISBN 7-119-03339-5; 1ª edição, Beijing, 2003

Basic theory of Traditional Chinese Medicine I, Publishing house of shangai university of TCM, 1999, pág. 166.

5 comentários em “Uma energia chamada qi (chi)”

  1. Avatar of Natália Gameiro

    Agradeço todo o conhecimento partilhado. Gosto da forma como me põe a refletir sobre conceitos adquiridos pelas escolas por onde passei. Muito obrigada.

  2. Avatar of Marta Martinho

    Interessante o seu texto.
    Tenho andado analisar este assunto do significado de Qi. O ideograma podemos traduzi-lo por vapor+arroz=Qi, será que não posso dizer que o Qi é o resultado da respiração celular
    O2+C6H12O6=ATP? Ou seja oxigênio+glicose=energia?
    Pois qualquer processo que ocorre no nosso corpo, uma simples ligação peptídica necessita energia de 0,5 a 4kcal.
    Fiquei sem entender o que é para si o yin?

    1. Avatar of Nuno Lemos

      Bom dia
      Acho que pode tentar dizer que Qi é o resultado da respiração celular. Mas será a mesma coisa que dizer que é energia. Está a tentar usar uma analogia simples entre uma tradução conveniente e a leitura que quer fazer da mesma.
      Os chineses nunca definiram Qi como energia nem como qualquer tipo de respiração celular.
      O Yin tal como o Qi são ideogramas que expressam uma ideia cuja compreensão está dependente do contexto em que se aplicam. Não tem nenhuma tradução especifica nem pode ter.
      Espero ter ajudado

  3. Avatar of Roberto Carozo

    Muito interessante o artigo…
    Tem muito a ver com minha nova forma de ver e interpretar o tema em questão.
    Minha formação original foi de uma escola de acupuntura com os dedos, hoje meu foco mudou já que me especializei no universo dos pontos gatilho.
    Única coisa que me incomoda do artigo e que você permanentemente se refere ao Qui como chinês sendo que é japonês. Inclusive o kanji ou ideograma que está usando no artigo, 氣 também é japonês. O Chi, chinês tem outro ideograma que o descreve.
    Essa permanente confusão entre os termos e ideogramas tem me deixado com uma certa sensação de desconforto.

  4. Avatar of Afonso

    Muito bom. Concordo com tudo o que conheço, e o que não conheço é coerente. Vou ler o livro recomendado.
    Obrigado pelo trabalho e bom continuação

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.