Definir acupuntura (): uma questão cultural, metodológica e política

Como definir acupuntura?

Como posso definir acupuntura de forma simples, lógica e pragmática?

Quais os seus limites enquanto técnica?

O que diferencia a esta terapia de outras práticas semelhantes?

Pode a cultura impôr barreiras ao definir acupuntura?

Como aceitam as diferentes profissões de saúde estas divisões?

Existem uma série de questões extremamente relevantes na definição de acupuntura.

Neste artigo vamos abordar algumas delas.

Definir num contexto cultural

As origens do significado de

lê-se zhēn jiǔ que significa agulha e calor. A palavra especifica para agulha de acupuntura será 针灸针.

Ou seja é uma prática que consiste no uso de diferentes tipos de agulhas (com ou sem punção com objetivo de pressionar, perfurar ou cortar) e na aplicação de calor (moxibustão).

Neste contexto cultural asiático a prática de sangria faz parte das técnicas de acupuntura (針刺) e há quem defenda que o início desta terapia esteve em práticas de sangria e não na punção de agulhas filiformes.

Ou seja, está associada a uma série de técnicas que envolvem laçerações, perfurações e pressão efetuada por instrumentos especifícos sendo também acompanhada por outras técnicas como a moxibustão e ventosas.

Definir no Ocidente

Chegou ao Ocidente pelas mãos dos padres Jesuítas e naquela altura, do conjunto extenso de técnicas zhēn jiǔ (), sobressaiu o uso de agulhas filiformes que eram colocadas em regiões estratégicas do corpo.

A definição de zhēn jiǔ (), no ocidente, está associada ao impacto que esta prática teve e daí o nome latino de acu (agulha) punctura (puncionar).

Ou seja, consiste na técnica de puncionar o corpo usando uma agulha muita especifica que ficou conhecida como agulha de acupuntura.

sistema de meridianos yin da perna ficado baço rim

Possíveis variantes ao definir acupuntura

Acupuntura na orelha e auriculoterapia

Nos estados Unidos existem correntes de pensamentos que diferenciam estas duas práticas exatamente porque uma delas não usa agulhas de acupuntura.

Ou seja auriculoterapia consiste na estimulação de diversas áreas da orelhas sem o uso de uma agulha de acupuntura. A técnica define-se pelo instrumento usado neste caso.

zhēn jiǔ (灸) na orelha consiste no uso de agulhas de punção seca para estimular o pavilhão auricular e auriculoterapia consiste no uso de um aparelho que deteta alterações de condutividade elétrica e dá estímulos elétricos na pele.

Estas diferenças não implicam que as técnicas sejam superiores ou inferiores ou que não possam ser usadas conjuntamente.

E também não são universais.

Será a laserpuntura uma forma de ?

Por outro lado, temos a laserpuntura que por definição não usa agulhas.

É vendida como (boa estratégia de marketing) mas não é. Isto não valida ou invalida o tratamento feito com laser.

O argumento que é laserpuntura porque é feito em pontos de acupuntura usa o mesmo argumento errado que sustenta que esta terapia tem de ser feita em pontos especifícos.

Outros exemplos destas diferenças pode ser a aplicação de sementes na orelha para fazer pressão.

A eletroterapia invasiva faz parte desta técnica?

É uma técnica que consiste na passagem de uma corrente elétrica através de uma agulha própria desta arte.

Neste caso, estando a técnica associada ao seu instrumento base (a agulha) tem lógica afirmar que é acupuntura elétrica.

Esta técnica começou a ser usada na China na primeira metade do século XX e foi rapidamente adotada pelos acupuntores japoneses.

Hoje em dia a fisioterapia invasiva usa nomes de substituição como eletrólise percutânea e eletroneuromodulação periférica.

Tal como acontece no caso na auriculoterapia também existe eletroterapia que não é zhēn jiǔ (灸) porque não usa agulha especifica.

acupuntura segura neuromodulação periférica

Acupuntura cirúrgica

Há uns anos li um artigo sobre esta técnica.

Neste caso através de uma cirurgia chegava-se ao nervo onde se atava uma pequena fita para promover uma ligeira compressão e consequente estimulação do nervo.

Este pequeno fio com o tempo degradava-se deixando de comprimir o nervo.

No Oriente, onde esta terapêutica tem um significado clínico que engloba mais técnicas talvez seja possível ser considerada acupuntura, mas no ocidente dificilmente.

Não é usada agulha filiforme que permite a punção seca e os procedimentos envolvidos enquadram-se na definição de cirurgia e não de acupuntura.

O facto de não ser muito falado indica que provavelmente não passou de uma ideia sem grande praticalidade clinica.

Fronteiras ideológicas

Atualmente esta terapêutica representa uma série de crenças sem qualquer ligação, em países com histórias e divisões sócio-profissionais muito diferentes.

Desde acupuntura esotérica que trata crises existenciais de origem astrológica a eletrólise percutânea ecoguiada que os fisioterapeutas usam para recuperar algumas lesões do tecido conjuntivo.

Do massagista que pode fazer punção seca no Reino Unido a alguns estados norte-americanos onde o fisioterapeuta está proibido de fazer punção seca.

A maior divisão hoje em dia será certamente entre uma versão mais tradicional e esotérica vs uma versão mais contemporânea.

A acupuntura contemporânea ou moderna nasce e cresce no Japão e países ocidentais preferencialmente.

Parte da recusa em aceitar a influência de crenças culturais, religiosas, políticas e filosóficas asiáticas com as quais não se identificam.

Certamente, os descendentes de Galileu preferem ir buscar o conhecimento diretamente à fonte que é a natureza e não a livros antigos.

A visão contemporânea parte do raciocínio clínico baseado em anatomo-fisiologia e foca todas as suas explicações nos fenómenos naturais conhecidos.

No Ocidente esta divisão entre acupuntores energéticos e contemporâneos é um remake dos batalhas setecentistas entre vitalista e mecanicistas.

Na China esta fronteira ideológica não existe e uma nova forma de pensar esta terapia começa a ser integrada nas teorias mais antigas.

pontos de acupuntura no ombro

Acupuntura médica e fisioterapia invasiva como novas fronteiras a definir acupuntura

Quem pode exercer esta técnica terapêutica?

Esta pergunta é mais importante do que parece para se poder definir acupuntura pois diferentes campos vão tentar diferentes argumentos para se sobreporem uns aos outros.

Na nossa sociedade existem 3 classes profissionais diferentes a tentar dominar esta arte terapêutica:

1 – acupuntores: por norma mais tradicionalistas e com maior aversão a técnicas contemporâneas e explicações cientificas.

Historicamente consideram-se os herdeiros da zhēn jiǔ – .

2 – Acupuntura médica: um corpo de saber com técnicas contemporâneas e tradicionais, sendo o argumento mais usado que enquanto técnica médica só pode ser feita por médicos e que não deve ser feita sem diagnóstico médico.

Na realidade os médicos nunca se opuseram a que os acupuntores trabalhassem desde que fossem técnicos a trabalhar sobre supervisão médica.

Por muitos argumentos esgrimados, nunca se explicou como chegou esta terapia até ao século XXI sem diagnóstico médico, nem a razão dos médicos usarem muitos protocolos de acupuntura chinesa.

Esta foi a primeira tentativa de uma classe profissional tomar conta da acupuntura em detrimento dos acupuntores.

3 – fisioterapia invasiva: a classe mais recente a entrar nesta corrida. Tal como a versão médica também contempla um conjunto de técnicas tradicionais e contemporâneas.

No desejo de angariar mais ferramentas, maior eficácia e autonomia, os fisioterapeutas começaram a aprender acupuntura, a criar os seus tratamentos e protocolos de intervenção e designaram uma nova área conhecida como “fisioterapia invasiva”.

Isto não é recente, basta lembrar as lutas, em alguns estados Norte-Americanos sobre quem podia fazer cursos de punção seca ou os pedidos de trabalho de fisioterapia no Reino Unido que vem acompanhados da necessária experiência em acupuntura.

A fisioterapia invasiva usa uma técnica argumentativa diferente criando novos desafios para definir acupuntura.

Em primeiro lugar usa uma definição que lhes é muito conveniente.

Em segundo lugar afirmam que o que fazem não é acupuntura mas sim fisioterapia invasiva, pois as técnicas saem do alcançe das ideias tradicionais.

A grande diferença é que os fisioterapeutas tentam inovar mais que os médicos, usam e abusam do marketing na falta de inovação e não contemplam a existência de técnicos a trabalharem para eles.

Os fisioterapeutas não reconhecem as suas técnicas como acupuntura.

Enquanto os médicos tentam impor uma ordem social os fisioterapeutas comportam-se como uma start up!

Acupuntores vs profissionais de saúde

Tantos os médicos como o fisioterapeutas partilham de uma aceitação mais generalizada e dominante de técnicas invasivas contemporâneas.

A sua evolução histórica determina os moldes em que definem os seus argumentos:

1 – os médicos usam e abusam do argumento da necessidade de diagnóstico médico enquanto os fisioterapeutas preferem argumentos técnicos a dizer que o que fazem não é acupuntura.

2 – os médicos estipulam a existência de técnicos e tornam a acupuntura médica uma afirmação de poder social, enquanto a fisioterapia invasiva tenta ser um ponto forte da autonomia profissional.

Estas 2 profissões também são responsáveis pela cada vez maior dificuldade em definir acupuntura, principalmente pelo poder social que tem cada uma.

Os acupuntores, na sua maioria descendentes de correntes filosóficas vitalistas, preferem abordagens mais esotéricas.

Quando no passado discuti com fisioterapeutas acerca da fisioterapia invasiva ou com céticos sobre definir acupuntura um dos argumentos usados estava na forma de raciocínio.

Para muitas pessoas é impensável aceitar que a mesma terapêutica possa ter um molde científico e ao mesmo tempo um molde esotérico.

Sao duas formas de olhar o mundo antagónicas e ninguém quer uma história à Schrodinger!

No entanto isto é também uma posição hipócrita por parte dos médicos e fisioterapeutas pois ambos usam formas tradicionais desta arte e a sua abordagem contemporânea não é exclusiva ou parte integrante da sua formação base.

dialogar com médicos e evidencia clinica

Definir acupuntura (针灸) por não acupuntores

Tem de ser feita em pontos de acupuntura

Este é provavelmente o maior erro propagado sobre esta arte e também o mais conveniente porque ao dar uma definição tão limitada e errada permite na realidade fazer tudo o que queremos.

É nesta fase que o encarnado deixa de ser encarnado porque alguêm lhe chamou vermelho.

Nunca na história se tentou definir acupuntura como tendo de ser feita em pontos especificos:

1 – o primeiro tratado de acupuntura traduzido para o Ocidente não falava em pontos nem meridianos;

2 – até as escolas mais tradicionais usam pontos ashi que não pertencem a nenhum sistema de meridianos e não são pontos regulares tal como os conhecemos;

3 – não existe nenhum obra técnica que especifique a arte a esse nível;

4 – o próprio ideograma chinês se foca nas ferramentas de trabalho e não nestas definições ignorantes.

Ou seja não existe lógica nenhuma nesta afirmação a nível histórico, técnico ou clínico.

A diferença entre técnica e mecanismo fisiológico

Distingue-se a acupuntura elétrica pela técnica ou pelo mecanismo neurofisiológico?

Esta questão é relevante.

Quando surgiu a punção seca, que basicamente é outra forma de definir acupuntura (puncionar agulha sem inserir nada através da agulha) o argumento era que esta tinha de ser feita em pontos de acupuntura e a punção seca era feita nos ventres musculares.

Ainda hoje em dia alguns profissionais de saúde usam esta definição.

Recentemente a EPI (Eletrólise Percutânea Intratecidular) também se afirmou como diferente da acupuntura porque os mecanismos fisiológicos desencadeados eram diferentes.

É um erro, mas um erro muito conveniente, confundir técnica com mecanismos fisiológicos na acupuntura.

Existem 2 factos relevantes nesta terapia:

1 – terapia multisistema, ou seja, uma técnica que permite o estímulo de diversos sistemas do organismo (nervoso, muscular, fascial, etc…);

2 – uma série de variantes na aplicação da técnica (com manipulação, sem manipulação, com estímulo elétrico, etc…)

que tornam óbvio a sua capacidade de usar diferentes mecanismos fisiológicos tal como está bem documentado.

A puntura no sistema nervoso parassimpático vai desencadear mecanismos neurofisiológicos diferentes da puntura no ventre muscular.

O uso de estímulos muito dolorosos promove diferentes reações em relação a estímulos mais relaxantes.

Muitas vezes, o segredo clínico, está em saber associar estes diferentes tipos de estímulos para criar uma relação sinérgica entre diferentes mecanismos fisiológicos.

Usar um mecanismo de ação para definir acupuntura é ignorante e hipócrita, mas muito conveniente.

crenças inúteis na acupuntura moderna

Injetar cocaína e tirar sangue

A técnica terapêutica () é definida pelo material usado.

Nem historicamente, nem recentemente se recorreu a agulhas com lúmen.

Podem ser instrumentos parecidos mas tal como as pirâmides do Egipto e da América do Sul também são parecidas tem finalidades e história completamente diferentes.

É um pouco como jogar baseball usando um taco de snoker. Os tacos são parecidos mas na realidade muito diferentes.

Também já encontrei, há uns anos, agulhas a serem vendidas como “agulhas para fisioterapia”. Muda-se o nome mas o instrumento continua o mesmo.

Manipulação da agulha é diferente

Outro argumento é que a manipulação que se faz da agulha é diferente para diferenciar técnicas “muito parecidas” mas diferentes da acupuntura.

Esse argumento foi usado, numa fase inicial, pela fisioterapia invasiva em relação à punção seca e está a ser usado novamente por fisioterapeutas que fazem EPI.

Mas diferentes tipos de manipulação de agulhas não diferenciam nada, pois esta terapia sempre foi caracterizada por diferentes tipos de manipulações da agulha.

A técnica inovadora de manipulação de agulha nos pontos gatilho, vendida pelos fisioterapeutas, é na realidade uma técnica de manipulação tradicional chamada “bicada de pássaro”..

Os diferentes tipos de manipulação de agulha são variantes inerentes à técnica e nunca a definiram.

Eletromiografia

Um problema interessante a ser colocado.

Pode a eletromiografia ser considerada acupuntura?

Usa uma agulha bem parecida com a agulha de punção seca e parece ser muito semelhante a acupuntura… à primeira vista.

No entanto existem diferenças:

1 – A técnica tem uma origem histórica diferente e não surge como uma técnica mais contemporânea da acupuntura como acontece com outras técnicas (punção seca, eletrólise percutânea, etc…)

2 – A técnica é usada para diagnóstico, nomeadamente avaliação da atividade elétrica dos músculos e consiste num registo de potenciais elétricos dos músculos.

3 – As agulhas, apesar de muito parecidas tem algumas diferenças [1]. E se falarmos de eletromiografia de superfície nem se fala em agulhas pois usam-se elétrodos.

Ou seja, não existe relação instrumental, terapêutica ou histórica com a .

É muito parecida mas só isso.

definir acupuntura

Reflexões finais sobre definir acupuntura

Definir acupuntura não é difícil, pois a arte sempre foi associada às suas ferramentas.

Crenças, metodologias de raciocínio clínico, técnicas de manipulação nasceram, amadureceram, mudaram-se e morreram. Sem dúvida, sempre fizeram parte da arte sem nunca ter capacidade de definir acupuntura.

Mas no ocidente existe uma série de choques ideológicos e profissionais que pretendem criar novas divisões e definições que se adaptam às suas crenças e interesses profissionais.

Curiosamente as mesmas pessoas que criticam os acupuntores esotérico-energéticos pela falta de cultura científica são as primeiras a violar a cultura cientifica e a usar argumentos políticos e interesses profissionais como se fossem argumentos cientificos.

A ciência e a técnica em segundo lugar, a cultura em primeiro.

Um fim irónico para quem se recusou inicialmente a aceitar a influência de parâmetros culturais na definição e operacionalidade desta técnica terapêutica.