Mesmo nível de evidência clinica: entre a justiça social e honestidade cientifica

Uma das acusações constantes de céticos, contra as TNC, está relacionado com a falta de evidência clinica das mesmas.

Se tem evidência clinica porque não sujeitar estas terapias ao mesmo crivo cientifico que os medicamentos ocidentais estão sujeitos?

Um dos céticos mais vocais com este argumento é o bioquímico David Marçal.

E, seguindo uma tradição quase religiosa, usa este argumento contra a homeopatia e depois engloba todas as TNC como se fossem a mesma coisa.

David Marçal tem razão em relação à homeopatia. Se a homeopatia é assim tão boa porque não está sujeita às mesmas regras de evidência que os medicamentos ocidentais?

Mas e a Acupuntura? E a Osteopatia? E a Fitoterapia?

O objetivo deste argumento é mostrar que as alegações dos terapeutas as TNC são falsas e que não existem provas que estas formas de terapia funcionem.

O objetivo também é passar uma imagem de falta de credibilidade cientifica por parte das TNC e um excesso de credibilidade cientifica por parte dos medicamentos e dos médicos.

Um homeopata vende curas sem provas, um médico só aplica aquilo que está provado funcionar.

Este argumento tem 2 problemas: ele aplica-se à homeopatia mas não se aplica a todas as outras TNC e a ideia base que deseja passar na diferença entre terapeutas e médicos é verdadeira mas só até certo ponto.(1)

medicamentosFoto de Miguel Á. Padriñán no Pexels

Evidência clinica e prescrição off label

“Off-label prescribing of psychiatric drugs is common, despite lacking strong scientific evidence of efficacy and potentially increasing risk for adverse events”

Patterns and predictors of off-label prescription of psychiatric drugs

“Off-label prescribing should be evidence based and further studies should address the need for adequate dosing guidelines for such prescribed medicines”

OFF-LABEL PRESCRIPTION FOR PAEDIATRIC IN-AND OUT- PATIENTS AT A TERTIARY HOSPITAL IN LAGOS, NIGERIA

A ideia que os médicos só prescrevem medicamentos que foram demonstrados eficazes por rigorosos estudos cientificos é completamente falsa.

A prescrição off label é a prescrição de medicamentos para tratar sintomas e populações para os quais esses medicamentos não foram testados.

Pode indicar a prescrição de um medicamento para uma doença para a qual ele não está estudado, a prescrição para uma população para a qual não foi estudado ou a prescrição em dosagens que nunca foram investigadas.(2)

A prescrição off label varia de especialidades médica (pediatria vs oncologia) e locais de consulta (cidade vs aldeia).

Estudos nos EUA e em França parecem demonstrar que de forma geral 20% de toda a prescrição médica é off-label. (1), (3)

Em pediatria representa perto de 50% de prescrições em Portugal.

Num estudo na Nigéria mostrou que as duas categorias mais comuns em prescrição pediátrica off-label era a dosagem (38,7%) e a idade dos pacientes (25%).

evidência clínica acupuntura estudosFoto de Chokniti Khongchum no Pexels

Da validação cientifica às guidelines clínicas e saúde pública

“Acupuncture has slightly better outcomes and fewer adverse effects than pharmacological prophylaxis (4 RCTs, n= 780)”

Sobre uso de acupuntura na cafeleia; Australian and New Zealand College of Anaesthetics and Faculty of Pain Medicine; pág. 269 (4)

“A acupunctura é um pouco diferente, porque aqui e ali há algumas provas fracas de que tem algum benefício nalgumas situações.”

Ben Goldacre em resposta a questão do David Marçal (5)

“one of the advantages of acupuncture is that the incidence of adverse effects is substantially lower than that of many drugs or other accepted procedures for the same conditions.”

National Institutes of Health, USA

“Individuals at increased risk of opioid misuse include those with: acute and chronic pain, physical health problems, or a history of mental illness (such as depression) or other substance use or misuse.”

US Department of Health & Human Services (9)

Mesmo depois de aprovado um medicamento ou um tratamento, podem não ser aconselhados como tratamento de primeira linha e podem existir discrepâncias entre diferentes guidelines ao aconselhar o uso desse tratamento.

Não está só a sua eficácia em causa, mas também a sua segurança ou o impacto que o seu uso generalizado pode ter na saúde pública.

Entre 2 tratamentos com eficácia semelhante mas diferenças de segurança pronunciadas, o tratamento mais seguro deve ser o preferido.

Dor, anti-inflamatórios e efeitos secundários

Por exemplo o uso de anti-inflamatórios no tratamento da dor lombar está a ser abandonado, em algumas guidelines médicas, como tratamento de primeira linha, devido aos seus efeitos secundários associados.

Em vez disso começa a preferir-se abordagens baseadas em osteopatia, acupuntura, exercício, etc… que obtêm bons resultados a controlar a dor e são abordagens muito mais seguras.

O problema não é a segurança dos anti-inflamatórios tomados num curto espaço de tempo em pacientes mais novos mas sim o seu uso generalizado durante longos períodos de tempo em todo o tipo de populações.

Nos EUA, a passar por uma crise de opióides que vai custar triliões de dólares começa agora a mudar-se mentalidades para estratégias que sejam eficazes mas menos onerosas para o paciente e para o erário público.

As politicas da Organização Mundial de Saúde visam exatamente começar a diminuir o impacto que os medicamentos tem na saúde humana e finanças públicas e começar a usar estratégias que consigam tratar os sintomas dos pacientes sem uma contra-partida tão acentuada.

dialogar com médicos e evidencia clinicaFoto de Gustavo Fring no Pexels

Pressão pública: uma forma comprovada de passar por cima da evidência clinica

“Sarepta recently drew criticism for not yet having started enrolling patients in its confirmatory trial of Exondys 51, despite the therapy getting accelerated approval in 2016,”

Wave takes a different tack from Sarepta in Duchenne (7)

“The panelists were less impressed by eteplirsen’s results, voting 16 to 1 that there is not adequate evidence to claim treatment with the drug is superior to corticosteroid and supportive care alone”

ICER blasts FDA, PTC and Sarepta for high prices on DMD drugs Emflaza, Exondys 51(8)

“The events around and following the FDA approval of deflazacort is a model of how not to promote innovation,” read the report.

ICER blasts FDA, PTC and Sarepta for high prices on DMD drugs Emflaza, Exondys 51(8)

A ideia que os medicamentos passam por processos cientificos altamente rigorosos e só são aprovados medicamentos que se mostrem válidos também é errada, se demasiado generalizada.

É sabido que as empresas farmacêuticas usam grupos de lobbies e manipulam grupos de pacientes para pressionarem a aprovação de medicamentos cuja eficácia não está comprovada.

Recentemente algo semelhante aconteceu com estas drogas para tratar a Distrofia Muscular de Duschenne.

Em 2016 uma clara pressão pública levou à aprovação de um medicamento, Exondys 51, cuja eficácia ainda hoje (2023) está por comprovar.(10), (11)

Muitos analistas pensam que foram as pressões impostas à FDA, para aprovação deste medicamento, que levaram à rejeição de um segundo medicamento em 2019 (6).

Apesar de já ser vendido desde 2016 os testes de confirmação de eficácia do Exondys 51 devem durar ainda até 2024.

A empresa tem sido criticada por atrasar o estudo confirmatório que como se compreende não terá muita vontade de acelerar. O problema não se fica por aqui.

2 medicamentos aprovados pela FDA para tratamento da DMD, tem sido bastante criticados pela falta de eficácia e pela ausência de benefício eficácia-custo devido ao preço excessivamente elevado dos medicamentos.

O Exondys 51 está a ser vendido nos EUA por mais de 1000000$ e o Emflaza por 84000$ apesar de custar somente 1000$ a produzir. (8)

As empresas farmacêuticas manipulam os grupos de doentes e criam grupos de lobbies a pressionarem a aprovação de medicamentos cujo benefício não está comprovado e que vai ser vendida a preço de outro a esses mesmos doentes.

Trabalhar com diferentes niveis de evidência clinica

Um estudo das guidelines clinicas permite compreender um facto muito simples.

Para qualquer situação existem tratamentos com diferentes niveis de evidência.

Os diferentes niveis de evidência não significam que uns tratamentos sejam bons e outros completamente inúteis.

Significa que deve existir uma hierarquia na forma como aconselhamos esses tratamentos.

Por isso se destinguem tratamentos de primeira linha de outros tratamentos.

Mas o facto de existirem tratamentos de primeira linha não significa que só possam ser feitos esses e depois outros. Em alguns casos eles até podem conjugar-se.

Acupuntura e substituição hormonal nos afrontamentos

A análise dos efeitos da acupuntura nos afrontamentos é um caso de estudo interessante.

A maioria das meta-análises mostra claramente que a terapia de substituição hormonal é o melhor tratamento disponivel.

A acupuntura não apresenta resultados tão bons mas é muito superior a não se fazer tratamento nenhum.

(Existe pouca diferença entre acupuntura verdadeira e falsa o que gera bastantes discussões sobre a validade da terapia ou da diferenciação entre verdadeira e falsa. Estas disputas vão ser tratadas noutro artigo.)

Ou seja a terapia de substituição hormonal é claramente um tratamento de primeira linha sendo a acupuntura um adjuvante.

Mas nos pacientes que não podem fazer substituição hormonal a acupuntura torna-se a melhor opção viável.

E uma vez que a acupuntura não se incompatibiliza com os tratamentos de substituição hormonal pode ser usada conjuntamente de forma a tentar melhorar o resultado final do tratamento.

Não há nenehuma área da saúde humana que trabalhe de outra forma porque não existe nenhum tratamento que consiga curar tudo. Todos falham em alguma altura.

Em algumas áreas a acupuntura e a osteopatia estão a inserir-se como tratamentos de segunda linha, noutros como tratamento de primeira linha e noutros como opções em que não vale a pena pensar.

Técnicas de osteopatia IMG

Conclusão sobre os níveis de evidência clinica nas TNC

O David Marçal quer fazer passar a ideia que as TNC não trabalham com o mesmo nível de evidência clinica que os tratamentos médicos ocidentais.

Que os terapeutas aplicam técnicas sem qualquer evidência clinica e que os médicos só aplicam técnicas com validade clinica.

Deixa-nos a acusação que estas áreas usufruem de direitos em termos de investigação cientifica que não existe para os medicamentos. E usa a homeopatia como exemplo. Sempre.

E como sempre está errado nas generalizações que faz. Uma análise superficial e incompetente a que já nos habituou.

O que se aplica à homeopatia não se aplica à acupuntura nem à osteopatia.

Existem cada vez mais fortes evidências da eficácia clinica destas terapêuticas.

Estão a aparecer em cada vez mais guidelines internacionais e já foram amplamente aceites e incorporadas por outras profissões como a medicina e a fisioterapia.

A ideia que os medicamentos são válidos porque só são aprovados por extensos estudos cientificos está errada.

Estão bem documentados casos de medicamentos que foram aprovados por pressão pública sem benefícios aparentes e com potenciais efeitos.

A ideia que o médico só prescreve medicamentos que foram comprovados cientificamente também é falsa.

Não só a prescrição de suplementos é comum (cálcio para osteoporose ou ácido fólico na infertilidade) como a prescrição off-label é bastante comum no dia a dia clinico.

E o problema da aprovação cientifica ou da prescrição final de um tratamento não está somente dependente da sua eficácia clinica mas de uma complexa equação que tem de levar em linha de conta uma série de fatores entre os quais:

1 – A evidência clinica

2 – A segurança

3 – As crenças dos doentes ou dos profissionais de saúde

4 – Políticas de segurança pública

5 – Custo dos tratamentos,

6 – Necessidade urgente de medicamentos para uma dada doença,

7 – Existência prévia de medicamentos que definam uma resposta “standard”,

8 – Nível de corrupção dos prescritores face à influência da indústria, etc…

Bibliografia

(1) https://www.webmd.com/a-to-z-guides/features/off-label-drug-use-what-you-need-to-know#1

(2) https://www.ouh.nhs.uk/patient-guide/leaflets/files/12048Punlicensed.pdf

(3) https://bmjopen.bmj.com/content/9/4/e026076

(4) https://fpm.anzca.edu.au/documents/apmse4_2015_final

(5) https://www.publico.pt/2018/11/12/ciencia/entrevista/ben-goldacre-regular-charlatanismo-ridiculo-1850518

(6) https://seekingalpha.com/article/4307396-sarepta-therapeutics-will-hard-time-getting-new-dmd-drugs-past-fda

(7) https://www.evaluate.com/vantage/articles/events/company-events/wave-takes-different-tack-sarepta-duchenne

(8) https://endpts.com/icer-blasts-fda-ptc-and-sarepta-for-high-prices-on-dmd-drugs-emflaza-exondys-51/

(9) https://www.hhs.gov/ash/oah/adolescent-development/substance-use/drugs/opioids/index.html

(10) https://www.healthaffairs.org/content/forefront/fda-s-approval-aduhelm-potential-implications-across-wide-range-health-policy-issues

(11) https://www.acpjournals.org/doi/abs/10.7326/M23-1073