Medicina Tradicional Chinesa

TABELA DE CONTEÚDOS

5 questões base

A Medicina Tradicional Chinesa ou MTC refere-se a uma prática médica que acompanhou a cultura chinesa ao longo de milhares de anos de história.

A Medicina Tradicional Chinesa encontra-se na base de todas as outras medicinas orientais onde se inclui a Medicina Japonesa e a Medicina Coreana.

Apesar de terem diferenças, a base foi toda retirada da Medicina Chinesa.

Em que consiste a Medicina Tradicional Chinesa?

A Medicina Tradicional Chinesa consiste num conjunto de práticas de base teórica filosófica e fisiológica.

Fisiológica porque todo o seu raciocínio está feito de forma a estudar ou a entender a forma como os diferentes sintomas se relacionam.

Filosófica porque toda a leitura feita tem de obedecer a determinados princípios da filosofia e cultura chinesas.

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Como se desenvolveu?

Esta forma de terapia tradicional começou como uma prática xamânica e os seus caracteres ainda contêm os radicais relacionados com essa prática.

Muitos dos seus conceitos atuais como mente (shen) ou vento (feng) tinham significados religiosos e esotéricos. Assim Shen representava espíritos e Vento (feng) era a base da demonologia chinesa.

Com o tempo os chineses abandonaram as crenças xamânicas mas mantiveram os seus conceitos.

Desta forma Shen passou a ser mente com função puramente psicológica (alguns autores ainda lhe chamam mente-espírito).

Da mesma maneira Vento (feng) deixou de ser um demónio e passou a ser um padrão, ou seja, uma forma de classificar sintomas.

É importante entender que a cultura chinesa não tem por hábito abandonar o conhecimento dos seus antepassados, sendo mais comum adaptar e desenvolver esse conhecimento.

A Medicina Tradicional Chinesa desenvolveu-se a partir de um imenso conjunto de experiências e observações clinicas.

A leitura cultural dessas observações ditou os parâmetros nos quais a medicina chinesa está moldada.

Como é feito o diagnóstico em medicina chinesa?

O diagnóstico é feito tendo em conta vários parâmetros como

1 – observação da queixa e do paciente (pele vermelha, observação do estado de espírito do paciente, observação da língua, etc…),

2 – palpação (pele, zona de dor com grande tensão, palpação do pulso, etc…),

3 – interrogatório (para ajudar a fazer a história clinica);

4 – cheiro\auscultação.

Ao conjunto de dados extraídos pelos chamados 4 métodos de diagnóstico (observação, palpação, interrogatório, auscultação) é feita uma análise baseada em determinados parâmetros culturais, que permite chegar ao diagnóstico.

Por exemplo, um paciente pode apresentar grande instabilidade emocional, vómitos agravados com irritabilidade e pulso tenso.

Associando os sintomas e sinais clínicos a medicina chinesa diagnostica um padrão de estagnação de qi do fígado que agride o estômago.

Os sintomas do paciente são classificados em duas categorias diferentes: sintomas gerais e sintomas de órgão.

É a existência destes sintomas e a relação causal entre eles que permitem ao terapeuta de Medicina Tradicional Chinesa fazer o diagnóstico.

Para uma compreensão mais desenvolvida do diagnóstico tradicional chinês leia o artigo que explica e reflete sobre diagnóstico.

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Quais as suas terapêuticas?

As terapias mais usadas por esta forma de terapia consistem na acupuntura, fitoterapia onde se inclui a dietética, massagem e qi gong.

Acupuntura e Moxabustão

A acupuntura consiste numa série de práticas sendo a mais conhecida a inserção de agulhas filiformes na pele mas não só.

Em chinês acupuntura é representada pelo ideograma zhenjiu que significa agulha e fogo. Ou seja a prática de aquecer, moxibustão, faz parte da acupuntura.

Para um estudo mais correto da acupuntura tradicional chinesa aconselho os artigos:

Doenças tratadas com Acupuntura tradicional chinesa

Pontos de acupuntura: categorias e dúvidas existenciais

Vasos longitudinais ou meridianos

Pilares da acupuntura

Matéria Médica

Fitoterapia está relacionado com o uso de plantas com valor medicinal mas o nome não é o mais correto.

O termos mais correto seria matéria médica pois não são usadas somente plantas com valor medicinal mas também minerais e partes de animais.

Na literatura técnica é mais comum ler-se matéria médica enquanto na literatura mais leiga é comum ler-se fitoterapia pois este termo é mais conhecido das pessoas.

A dietética é uma parte da matéria médica (fitoterapia) e consiste no uso de determinados produtos de origem animal ou vegetal na alimentação diária.

Técnicas Manuais e Tui Na

A massagem engloba tanto a massagem como manipulações, sendo uma área com um desenvolvimento grande na China.

No fundo consistem numa série de técnicas manuais que visam complementar os outros tratamentos de medicina chinesa.

Qi Gong ou Chi Kung

O qi gong de todos os tratamentos é o mais marginalizado nas universidades chinesas pois tanto pode ser visto como terapêutico como pode ser um simples desporto.

Não se ensina futebol nas universidades de medicina só porque faz bem à saúde.

O qi gong também está associado a práticas e crenças esotéricas que não tem muito espaço nos meios académicos.

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A medicina chinesa é compatível com a medicina ocidental?

Regra geral sim, mas existem dois fatores importantes a ter em consideração como são as terapêuticas a usar e a qualidade dos profissionais.

Algumas terapêuticas como a acupuntura não se incompatibilizam com as práticas da medicina ocidental.

Pelo contrário, podem ser usadas para potencializar muitos tratamentos da medicina ocidental ou até para evitar alguns tratamentos mais agressivos (cirurgias em hérnias, por exemplo).

No entanto a fitoterapia já se pode incompatibilizar com a prescrição de medicamentos sendo necessário cuidado e responsabilidade a tomar ou a prescrever os fitoterápicos.

Infelizmente no ocidente a maioria das formações são muito fracas e existem muitas crenças esotéricas associadas às mesmas o que faz com que seja necessário cuidado com muitos profissionais que se vendem como especialistas em medicina chinesa.

A falta de regulamentação ajuda a manter uma situação mais ou menos caótica na área.

Cultura e língua chinesa

Pensamento chinês: 3 bases cruciais

A maioria das pessoas aborda a Medicina Chinesa sem compreender 3 aspetos fulcrais do pensamento chinês. Muitos erros e más interpretações da medicina chinesa advêm do desconhecimento destes factos. Os 3 aspetos que eu creio cruciais explicar são: noção de micro-macrocosmos; (2) norma na cultura chinesa e (3) poesia (noção de beleza aplicada à lógica). Vamos analisar cada um deles em separado.

Microcosmos-macrocosmos no pensamento chinês

As leis que regem o corpo são as mesmas que regem a natureza. Uma vez que o corpo se encontra inserido na natureza ele não é mais que um pequeno microcosmos. Todas as observações e pensamentos dos chineses estão focados neste pensamento.

Qualquer observação feita a partir da natureza deve ser entendida nesta perspetiva. Historicamente foi este pensamento que limitou a cultura chinesa de se desenvolver e de criar uma medicina mais baseada na clinica do que na filosofia. É também por causa deste pensamento que muitas vezes temos dificuldade em separar uma análise puramente clinica de uma análise onde filosofia e clinica se misturam. É possível dar vários exemplos deste pensamento.

Na acupuntura tradicional chinesa existem pontos regulares e pontos extra. Os pontos regulares possuem uma localização específica, indicações clinicas bem definidas e pertencem a um sistema de vasos longitudinais. Os pontos extra são idênticos aos pontos regulares com a diferença que não pertencem a sistema de vasos longitudinais. Existem imensos pontos extra que ficam no percurso de vasos longitudinais (yintang no vaso governador, dannagxue no vaso da vesícula biliar, etc…). Qual a razão pela qual eles não pertencem então a esses vasos longitudinais? Tem indicações idênticas aos pontos daquele meridiano e a localização coincide.

A razão não é clinica nem científica. Tem a ver com a noção de microcosmos-macrocosmos dos chineses. Como o corpo é um reflexo do macrocosmos este deve imitá-lo. Tem 4 membros que correspondem às 4 direções cardinais. Tem 364 pontos de acupuntura regulares que correspondem aos 364 dias do ano. O macrocosmos expressa-se no microcosmos.

A razão pela qual existem 12 vasos longitudinais também não é clinica nem científica. Está relacionado com os 12 rios principais da China. O vaso longitudinal é visto como um rio que atravessa o império e faz as suas diferentes províncias comunicar entre si. Existem outras fontes históricas que parecem indicar os 12 vasos longitudinais com os 12 meses do ano.

Também podemos observar este pensamento na forma como se constrói uma fórmula de matéria médica. Primeiro usa-se a droga imperadora, depois a ministra e assim sucessivamente. A forma de construir uma fórmula de matéria médica representa a divisão da corte imperial da dinastia Song.

Outro exemplo que se pode usar está relacionado com as descrições anatómicas que os chineses fizeram do corpo humano. As primeiras descrições são fabulosas para o período em que foram feitas e mostravam um império com conhecimentos avançados para a sua época. Mas as descrições posteriores afastaram-se cada vez mais da descrição real do corpo humano.

Isto deve-se ao facto dos chineses terem adaptado as descrições do corpo humano (por exemplo, eles nunca representam músculos em comparação com os trabalhos de Leonardo da Vinci, por exemplo, onde os músculos estão representados) à sua noção de micro e macro-cosmos. O corpo era um reflexo do império. Os órgãos eram uma correspondência entre partes do império. Os meridianos eram os caminhos que permitiam o contacto entre o império, etc… Ou seja o coração e outros órgãos começaram a ser representados de acordo com a sua correspondência ao império chinês.

O pensamento chinês é normativo: a importância da norma

A maioria das pessoas quando fala de medicina chinesa começa por falar de um conjunto de energias que existem no corpo. A noção que existem energias no corpo nada tem a ver com a medicina chinesa. Isso é um reflexo da cultura ocidental. A cultura ocidental é uma cultura dualista onde ciência e religião são campos duais do pensamento humano, onde energia e matéria chocam. Os conceitos de energia, usados no ocidente, são conceitos vitalistas decorrentes das guerras filosóficas setecentistas de vitalismo versus mecanicismo e que foram adaptados pelos meios new age no século XX. Mais uma vez vamos abordar vários exemplos:

O conceito de doença é capaz de ser o mais óbvio. A doença para os chineses decorre do desequilíbrio que surge entre microcosmos e macrocosmos. O macrocosmos tem determinadas leis. Se o ser humano (microcosmos) não se adaptar a essas leis então surge a doença. Ou seja, para os chineses a doença é a violação da norma da natureza. É a violação da lei.

Não só a medicina chinesa está assente neste principio como toda a cultura chinesa. As teorias do yin-yang ou dos 5 movimentos são usadas tanto na medicina tradicional chinesa, como no feng shui ou na análise que os chineses fazem da sua história ou das relações internacionais. Condiciona todo o pensamento chinês.

Este conceito de norma serve tanto para explicar algo como para definir a ação da pessoa. Sem estas noções da importância da norma na medicina chinesa ninguém será capaz de a compreender. Por exemplo o que significa a afirmação: “existe um desequilíbrio yin-yang”. É a explicação mais simples para a doença mas é algo tão vago que se perguntarem a um acupuntor ocidental o que significa ele vai tentar falar em energias para explicar aquilo que não compreendeu.

A noção de desequilíbrio yin-yang não só faz referência à violação da norma como define a norma de ação para o diagnóstico. Por isso existem os 8 principios de diferenciação de síndromes. Os 8 princípios são: diferenciação entre yin e yang, diferenciação entre frio (yin) e calor (yang); diferenciação entre interior (yin) e exterior (yang) e finalmente a diferenciação entre vazio (yin) de excesso (yang).

Ou seja a noção de desequilíbrio yin-yang não é algo puramente explicativo ou descritivo. É sim uma forma de explicar uma causa e simultaneamente definir a norma de ação para se estudar, compreender e tratar essa causa.

Se se reparar todo o processo de diagnóstico, definição de princípios terapêuticos e elaboração das terapêuticas selecionadas não é mais do que um jogo complexo de normas a ser seguidas. O diagnóstico tem normas muito próprias como já vimos. Os princípios terapêuticos vão dar objetividade às terapêuticas. A forma de construir uma fórmula ou um protocolo de acupuntura está estruturado dentro de uma série de normas bem definidas.

Outros exemplos, que não serão explorados, mas demonstram bem a importância da norma estão relacionados com as normas de construção de um protocolo de acupuntura (combinação e classificação de pontos) e com a formulação do sistema de cun.

Poesia é o culminar do pensamento chinês

A componente poética é essencialmente estética. É fulcral no pensamento chinês e está em todos os cantos da medicina chinesa.

Esta componente estética será mais facilmente compreendida por matemáticos. Os matemáticos consideram determinadas equações e teorias mais bonitas que outras. Isto tem a ver com as regras que definem essas teorias e a forma como elas permitem criar lógica. Quem criou as primeiras teorias de acupuntura foram matemáticos e não clinicos.

Para os chineses todas estas áreas estavam interligadas. Os matemáticos conseguem compreender o funcionamento do macrocosmos e transformar isso num conjunto de normas a ser aplicado no microcosmos. Daí, a cronoacupuntura, ser tão importante na tradição chinesa.

A grande diferença entre livros de acupuntura chineses e ocidentais é que os ocidentais nunca perceberam a importância das normas na construção de um protocolo de acupuntura, nem nunca conseguiram admirar a beleza que daí surge. Basta o leitor fazer uma comparação simples entre livros técnicos de acupuntura chinesa escritos nas universidades chinesas e escritos por autores ocidentais.

Características linguisticas da Medicina Tradicional Chinesa

Língua chinesa: um aspecto único da cultura mundial

No ocidente separou-se a religião da ciência, abandonaram-se línguas antigas (chamadas línguas mortas como o Latim) e criaram-se novas, abandonaram-se conceitos que não eram úteis (como o éter) e criaram-se outros.

No oriente foi exatamente o oposto. Apesar da ciência e religião serem diferentes, o pensamento base é o mesmo sendo tudo analisado a partir dessa unicidade.

Criou-se uma única língua à qual se mantiveram fiéis durante milénios, desenvolveu-se um culto aos antepassados que transformou os caracteres da língua em autênticos documentos históricos, a cultura definiu-se como normativa em vez de dualista.

“São muitas as grandes civilizações que marcaram a presença do homem na terra, mas apenas a chinesa sobreviveu até aos dias de hoje, com as suas principais características e, feito único, manteve uma língua em uso durante mais de seis mil anos.

Isto certamente aconteceu em virtude de uma combinação afortunada de diversos factores,  mas sobretudo pelo sistema de escrita: os misteriosos, fascinantes caracteres, cada um dos quais esconde relatos de história, de literatura, de arte, de sabedoria popular.(1)”

A língua chinesa é única no mundo devido ao seu sistema de representação em caracteres, devido ao facto de ser a mesma ao longo de milénios (obviamente com a consequente evolução desses mesmos caracteres) e devido ao facto de cada caracter representar a sua própria evolução ao longo dos séculos de história chinesa.

O ideograma para medicina, ainda contêm o radical que identifica as práticas xamânicas.

Outro exemplo excelente seria o estudo do conceito de Vento em Medicina tradicional chinesa.

O ideograma do Vento ainda representa as crenças chinesas de que o vento seria o criador dos insetos, uma parte fulcral da demonologia do vento (2).

Registos arqueológicos indicam que na dinastia Shang se acreditava em fantasmas-vento, de acordo com oráculos em ossos, os xamâns controlavam as forças do vento.

“In comparison to wind, the Shang inscriptions also traced bugs as both natural and demonic agents of destruction. By the Warring States period, bug aetiology was applied to ailments involving infestations in the body” (3)

Posteriormente o conceito de vento evoluiu para uma entidade espiritual capaz de provocar doenças, sendo que o conceito de vento é a base da demonologia chinesa[iv].

Posteriormente o conceito de vento evoluiu para uma entidade espiritual capaz de provocar doenças, sendo que o conceito de vento é a base da demonologia chinesa (4).

Na altura do Su Wen, o vento tinha-se tornado um aspeto importante da medicina mas distanciado da demonologia chinesa, rejeitando as doenças como provocadas por demónios, e criando uma teologia natural do conceito de vento como base de todas as doenças. No texto Zhu Feng Za Lun (Discurso dos Vários Assuntos Referentes a Todos os Ventos) vem escrito:

“The wind is the origin of the one hundred diseases. The wind is the master of the one hundred diseases. The wind is the chief of the one hundred diseases. The wind is the origin of the one hundred diseases. I know that the hundred diseases are generated by qi (5)”

Dois textos posteriores tentam integrar a etiologia do vento numa correspondência sistemática. No su wen já vem bem descrito o seu significado clínico, completamente desprovido da sua capa religiosa:

“When wind harms a person, it may cause cold and heat, or it may cause a heated centre, or it may cause a cold centre, or it may cause li-wind [leprosy], or it may cause unilateral withering, or it may cause wind” (6)

Chama-se a atenção para os diferentes significados de vento que pode inclusivamente ter um significado mais generalista abordando padrões clínicos e doenças. Por exemplo, malária traduz-se como mau ar, mas em chinês o seu significado era “mau vento” ou “vento mau/patológico”.

Forma como os ocidentais apreendem os conceitos chineses

Qualquer análise dos conceitos da medicina chinesa tem de considerar as bases culturais e caracteristicas linguisticas da mesma.

Infelizmente, compreender a cultura ou a língua chinesa parece ser a última coisa que os ocidentais estão interessados em fazer.

Para começar a explicar alguns conceitos base da Medicina e cultura chinesa, decidi usar um comentário antigo de uma estudante de medicina chinesa.

Este comentário vai ajudar-nos a compreender a medicina chinesa através das crenças esotéricas ocidentais sobre cultura e medicina chinesa.

A aluna escreveu num dos meus artigos:

“Eu acho a MTC muito esotérica, e como eu costumo dizer “muito à frente”. Um dos conceitos que eu adoro em MTC são as entidades viscerais, o Shen ou espirito, que se divide em vários Shen’s, e o meu preferido é o Hun, chamado de alma etérea, para quem não sabe, trata-se da alma (penso que energética porque não se vê) que entra no corpo quando nascemos e deixa o corpo quando morremos (que não morre), ela habita no sangue do fígado (isto é mesmo muito à frente), e durante a noite se não estiver bem enraizada sai do corpo durante o nosso sono e viaja pelo quarto, pela nossa rua etc etc….. daqui a pouco estamos numa sessão espiríta ehehehe . Sinceramente quando eu aprendi isto fiquei de boca aberta a olhar para o professor e pensei então mas isto é MTC???? Esoterismo? Naaaaaaaa!!! Muitos conceitos cientificamente comprovados eheheh e o mais fantástico de tudo é que existe um ponto na zona dorsal no chamado meridiano da bexiga (mas estávamos a falar do fígado??????) que restabelece o equilíbrio energético do fígado e resolve o problema do Hun e das insónias ehehehe (tudo comprovado cientificamente).

Adoro a parte do “sangue do fígado”, se este estagnar estamos propensos às insónias e muitos sonhos, por isso temos que pôr este sangue em movimento. Outro conceito lindo é que a nossa força de vontade vem do Rim, se eu tiver um Rim energéticamente(?) ou o órgão em si? em equilibrio eu sou uma pessoa com muita força de vontade, mas se entretanto ganhar pedra no rim eheheh, passo a ser uma pessoa que nem lhe apetece levantar da cama de manhã… há que tonificar o rim para resolver isto…. então mas espere, a força de vontade não é do nosso cérebro? e não se trata com uns antidepressivos? para a MTCé o nosso rim que fica na parte inferior do corpo que nos leva a ter força de vontade, bem longe do nosso cérebro, isto também está comprovado pela comunidade cientifica.

O nosso baço gere a nossa capacidade de raciocínio, memória para estudar, por isso há que tonificar o baço e nada de ampolas para o cérebro, isto também está comprovado cientificamente.”

O comentário desta leitora torna-se particularmente relevante, uma vez que nele se encontram bem explícitos muitos dos mal entendidos que existem sobre medicina chinesa no ocidente.

A crença esotérica sobre energia e a compreensão do pensamento chinês

Duas bases do pensamento usado para sustentar as supostas “medicinas energéticas”, foram muito bem expostas pela leitora quando escreveu:

“trata-se da alma (penso que energética porque não se vê)”

“Outro conceito lindo é que a nossa força de vontade vem do Rim, se eu tiver um Rim energéticamente(?) ou o órgão em si? em equilibrio eu sou uma pessoa com muita força de vontade, mas se entretanto ganhar pedra no rim eheheh, passo a ser uma pessoa que nem lhe apetece levantar da cama de manhã…”

Nestas duas citações é possível observar as duas fontes de erro mais comuns:

Em primeiro lugar é um conceito energético porque não se vê. Outro leitor do blogue recentemente expos o mesmo raciocínio ao escrever:

“apenas fico perplexo com as suas palavras neste ponto, o negar constantemente a base da Medicina Chinesa, que é de facto a Energia, aquela que não se vê. Ponto final, não ha volta a dar, podem evoluir as tecnologias mas a Energia nunca se vai poder ver, pelos menos nos seculos mais proximos.”

Esta é a principal razão pela qual o carácter chinês Qi é traduzido, erroneamente, como energia.

Porque efetivamente, o caracter apresenta uma parte que traduzida significa “o movimento de uma substancia invisível”.

É deste movimento de uma substância invisível que os ocidentais pegaram para aplicarem os conceitos energéticos vitalistas.

O caracter Qi, no entanto, na sua totalidade significa “o movimento de uma substância invisível com base material” sendo que os chineses sempre foram muito explícitos em relação ao que seria a substância invisível: nada mais nada menos que o ar que respiramos.

Aplicando este conceito ao corpo humano temos que a tradução mais correta para Qi seria respiração e nunca energia (pode ler mais artigos sobre o significado de qi na categoria de esoterismo e teoria básica……)

Para uma análise mais profunda do significa de Qi na medicina chinesa pode consultar o artigo que escrevi sobre o assunto aqui!

Em segundo lugar está a associação de faculdades mentais com órgãos físicos.

Este erro também é muito comum, muito especialmente, porque estes termos são incorrectamente traduzidos e ainda mais mal explicados.

O pensamento é simples: se eu tenho um órgão físico sem associação com o aspeto mental mas esse aspeto supostamente existe, então só pode ser um órgão energético.

Quando fazem estas afirmações as pessoas não param para pensar nem levantam a questão:

O que é que significa este conceito em medicina tradicional chinesa? O que é que significa Rim? E Coração?

Esta confusão com órgãos físicos é muito comum. Ainda recentemente outro leitor do blogue comentou:

“q relação tem os olhos com o figado?

o cabelo com os pulmões?

o ouvido com os rim?? epá isto cientificamente é capaz de ser dificil… n sei digo eu,”

Por mais impressionante que pareça os profissionais e alunos da área não sabem que fígado, pulmão, rins ou outro órgão qualquer são conceitos que nada têm a ver com os órgãos ocidentais (e já agora o cabelo não tem nada a ver com os pulmões em MTC…).

Basta pensar que na medicina tradicional chinesa se descrevem “órgãos” como San Jiao que nem sequer tem uma expressão física como supostamente tem o coração ou o pulmão.

San jiao costuma ser traduzido como triplo aquecedor – é algo comum no ocidente.

E, efectivamente, jiao pode significar aquecedor mas não num contexto médico, onde ele significa algo como “espaço dentro do corpo”.

Triplo aquecedor refere-se não a um aquecedor mas a 3 espaços distintos no corpo.

Mas facilmente se encontram pessoas que não sabem isto porque lêem aquecedor como se fosse aquecedor.

Isto chama a atenção para o facto que existe um órgão na medicina tradicional chinesa que, no fundo, são somente 3 espaços no corpo e não um órgão como o pensamos no ocidente.

Só este facto deveria fazer-nos pensar bem acerca do significado dos termos chineses.

É destes erros de análise e a total incompreensão do pensamento chinês que fazem estas pessoas cair no erro de verem a medicina tradicional chinesa como uma crença esotérica.

Se pensarmos no órgão como uma forma de relacionar determinado conjunto de sintomas então a nossa visão desta medicine muda por completo.

Esoterismo vs cepticismo ocidental e abstracionismo asiático

A análise cultural em que viciamos a tradução dos termos chineses também condiciona a leitura que fazemos do todo que é a medicina tradicional chinesa.

Muita da discussão sobre medicina tradicional chinesa no ocidente é uma batalha constante entre meios esotéricos e científicos, com total ausência de análise cultural e linguistica.

Estas disputas vitalistas vs mecanicistas só conseguem analisar o problema como uma dualidade: ou é científico ou é esotérico.

Os conceitos da medicina chinesa não são científicos mas não significa que sejam esotéricos.

Em vez de pensarmos nesses conceitos como esotéricos ou científicos pensemos antes em conceitos abstratos, cuja existência está condicionada pela sua utilidade numa cultura normativa e cujo significado varia consoante o contexto em que são aplicados.

Por exemplo, o yin e yang podem ser usados para distinguir o mundo material (yin) do mundo espiritual (yang), a noite (yin) do dia (yang), a substância material das estruturas (yin) e da sua função (yang).

Ou seja não são os termos em si mesmo esotéricos mas somente o contexto em que são usados.

Mas no ocidente ideogramas como yin e yang dividem duas facções.

A facção da energia que diz que existem duas energias no corpo (positiva e a negativa) e a facção céptica que diz que nunca se conseguiram detectar estas energias em laboratório.

Olhando para o parágrafo anterior, onde apresentei estes conceitos como abstratos, cujo significado está dependente do contexto, parece uma discussão fútil, aquela que se assiste no ocidente.

Hun e Po: um estudo comparativo sobre a obsessão dos ocidentais pela religião chinesa

A compreensão de ideogramas como Hun e Po mostra bem a diferença que existe entre os ocidentais e os chineses.

Os ocidentais dão mais atenção às conotações esotéricas dos ideogramas e tendem a apresentá-los sempre numa abordagem religiosa ou então, numa mistura entre religião e ciência.

Os chineses, por seu lado, quase não ligam a estes caractéres.

Não se fazem análises da evolução histórica do termo, nem análises exclusivamente clínicas do mesmo.

Dificilmente um aluno faria este tipo de confusões se Shen não fosse descrito como algo espiritual (conotação mais primitiva e abandonada do mesmo) e sim uma simples função psicológica do ser humano.

Outro exemplo disto mesmo é o conceito Hun (alma etérea). Este conceito quase não tem importância em medicina tradicional chinesa. Assim como o conceito de Po (alma corpórea).

Por exemplo, Xie Zhufan, na obra Standard Nomenclature of Tradicional Chinese Medicine, onde aborda os principais termos técnicos chineses e a sua tradução nem se preocupa em designar estes conceitos.

Não se fala em Hun, Po ou qualquer outra coisa semelhante. No entanto lá se encontram explicitas todas as funções psicológicas associadas aos órgãos (tal como entendidos na MTC).

Imensos livros técnicos, escritos por chineses, que abordam problemas associados ao Hun nem o mencionam. E quando o fazem, fazem-no somente a um nível histórico.

A obra Internal Medicine of Traditional Chinese Medicine da publishing house of shangai university não lhe faz menção. (9)</>

A obra Acupuncture and Moxibustion Formulas an Treatment escrito por Cheng Dan-An, compilado e traduzido por Wu Ming não refere uma única vez o conceito. (10)

Ganglin Yin e Zhenghua Liu, na obra Advanced Modern Chinese Acupyuncture Therapy não referem o termo uma única vez. (11)

Li Xuemei e Jing Zhao referem o conceito na sua obra Acupuncture Patterns and Practice indicando que Hún (alma etérea) é a força que dá vida e que existe no corpo vivo, referindo a mesma como uma actividade mental. (12)

A obra Basic Theory of Traditional Chinese Medicine, uma versão dos anos 80 da livraria de medicina tradicional chinesa da Universidade de Shangai não refere o termo uma única vez. Refere as funções do órgão sem algum tipo de conotação religiosa.

A obra, Practical Diagnosis in Traditional Chinese Medicine, de Tietao Deng também não refere a termo uma única vez. Refere um termo “spirit-mind” descrito puramente em termos psicológicos sem qualquer tipo de conotação esotérico-religiosa.

A obra, The Treatment of Pain with Chinese Herbs and Acupuncture, editado por Sun Peilin, apesar de abordar a dor associada a aspectos mentais em nenhum momento recorre a termos como hun ou alma etérea.

Na obra, Of Acupuncture Treatment for depression, da autoria de Xu Jin-Shui e Cheng Li-hong o conceito de hun é referido mas somente como consequência da citação de um clássico.

De resto faz uma análise completa da depressão na MTC sem precisar referir uma única vez o termo hun.

No entanto a maioria dos livros ocidentais explora ao máximo a conotação religiosa dos mesmos.

Susanna Dowie, na sua obra Acupuncture – an aid to diferential diagnosis com introdução de Maciocia, refere o termo 4 vezes (7).

Jeremy Ross na obra, Acupuncture Point Combination The Key to Clinical Sucess, menciona o termo Hun e dedica-lhe 3 parágrafos, mesmo não recorrendo a citações de clássicos e focando-se na sua definição mais clínica e menos religiosa. (8)

A obra The Treatment of Modern Western Diseases with Chinese Medicine de Bob Flaws e Phillipe Sionneau usa o termo hun 1 vez mas usa o termo ethereal soul por várias vezes referindo sempre acções relativas a plantas (calms de ethereal soul).

Comparando autores ocidentais e chineses é fácil observar que os ocidentais mais facilmente recorrem ao significado mais religioso e menos clínico dos conceitos e dão mais atenção a esses conceitos e a explicá-los.

Talvez a diferença entre a apresentação de Maciocia e Xi Wenbu seja a mais representativa.

Maciocia na sua obra, Os Fundamentos da Medicina Chinesa, refere na pág.105, sobre as funções do fígado:

“6. Abrigar a Alma Etérea

A Alma etérea, chamada de Hun em chinês, é um aspecto mental-espiritual do fígado (gan)… O conceito de de Alma Etérea está intimamente vinculado às antigas crenças chinesas sobre “espíritos” e “demónios”… Desde a guerra dos estados, as causas naturalísticas da patologia (tais como o tempo) substituíram estas crenças, as quais, todavia, nunca desapareceram totalmente, mesmo até ao presente momento. O carácter para hun contêm o radical Gui que significa “espírito” no sentido anteriormente descrito, e o radical para Yun é “nuvem”. A combinação destes dois radicais transmite a ideia da natureza da alma etérea: é como um “espírito” mas é de natureza yang e etérea, sendo essencialmente inofensivo, ou seja, não é um espírito ruim… alma etérea não apresenta grande relevância na Medicina Chinesa quando comparada aos outros quatro aspectos espirituais (Alma corpórea, Mente, Força de vontade e Pensamento)…”

Noutra obra, The practice of Chinese medicine, novamente refere hun na descrição que faz da mente em medicina tradicional chinesa, descrevendo os cinco aspectos mentais-espirituais da mesma.

Fala do hun por 3 vezes e chega a dedicar partes do livro à descrição do mesmo e análise do seu caracter.

Em Comparação a obra, Tratado de Medicina Chinesa, da autoria de Xi Wenbu e publicada inicialmente pelo departamento de edições em línguas estrangeiras pela Universidade de Beijing não refere uma única vez o conceito hun para definir as funções do fígado.

Não faz uma única menção ao conceito mental-espiritual que Maciocia refere.

Hun, Po, e Shen: entre a história e a atualidade

Como vimos em relação ao conceito de Vento existe uma discrepância entre o seu significado histórico original e o seu significado atual.

Conceito religiosos mais recentes, como Hun, parecem ter um impacto mais significativo nos acupuntores ocidentais do que ideogramas que representam divindades mais antigas, como o vento.

Para a leitora que fez o comentário inicial, o Hun (chamado de alma etérea) é a alma propriamente dita.

A razão para tal é baseada em saber que o hun entra no corpo na altura do nascimento e sai do corpo na altura da morte e não se vê (como já discutido nos parágrafos anteriores).

Tanto o termo Hun (alma etérea) como Shen (espírito) são bons exemplos usados pela leitora.

Acerca do Shen, a leitora do blogue referiu: “o Shen ou espirito, que se divide em vários Shen’s”.

Shen é um conceito que tanto tem um significado clínico como religioso na cultura chinesa. (13)

O dicionário, Dictionary of Commonly Used Characters in Archaic Chinese, descreve Shen como um deus ou um ser sobrenatural, um espírito, uma lei da natureza”.

Esta descrição está associada ao conceito do mesmo nas sociedades iniciais e nesta fase inicial, onde a medicina era essencialmente xamânica, o Shen era visto como um espírito.

O seu significado inicial estava relacionado com raios que eram governados ou incorporizados por deuses.

A associação com o raio derivava da noção chinesa de invencibilidade, ausência de fronteiras, e imprevisibilidade.

Os chineses acrditavam que os fenómenos naturais mais imprevisíveis e mutáveis eram resultado de deuses (shen´s).

No entanto não é esse o entendimento que a medicina tradicional chinesa tem do mesmo, actualmente.

No Concise Dictionary of Chinese Medicine, o termo Shen vem descrito como “a colective term for life activities of man in a broad sense” e “thinking and awareness activities in a narrow sense”.

A obra, The Fundamental Theories of Chinese Medicine, descreve o Shen como tendo 3 significados possíveis na medicina chinesa:

“SHEN bears 3 meanings in the Chinese medical theory: the first, the transformations, the changes, and the functions of the materials in the nature; the second, all of the activities of man´s life; the third, thinking and awareness of man”. (14)

Estas noções não tem nada de esotérico apesar da sua tradução mais imediata como espírito ou da sua análise histórica indicarem uma raiz mais religiosa.

O conceito de Alma etérea, que atualmente os chineses quase não usam, tem significado histórico diferente do atual significado clínico.

Nós ocidentais, preferimos claramente o seu significado histórico.

A leitora do blogue referiu:

“o meu preferido é o Hun, chamado de alma etérea, para quem não sabe, trata-se da alma (penso que energética porque não se vê) que entra no corpo quando nascemos e deixa o corpo quando morremos (que não morre), ela habita no sangue do fígado (isto é mesmo muito à frente), e durante a noite se não estiver bem enraizada sai do corpo durante o nosso sono e viaja pelo quarto, pela nossa rua etc”

Na realidade o conceito de alma para os chineses não era o hun. O hun seria uma parte mais yang da alma. Outra parte, mais yin da alma seria o Po, por exemplo.

Mas o conceito de alma para os chineses até era mais complicado, uma vez que eles acreditavam que o ser humano tinha 10 almas (todas elas almas hun ou po).

Quanto ao conceito de hun é mais histórico que clínico nos dias de hoje.

Historicamente, hun era um ideograma extremamente religioso que inclusivamente trouxe vários dissabores aos cristãos.

“Moreover, Christian doctrine required a single immortal soul, whereas the Chinese held that, as an expression of yin and yang, a person consisted of corporeal and ethereal aspects. Souls followed suit. Po souls were corporeal, yin in nature and present in the body from birth. They entered the ground with the corpse. Should they not receive correct burial, food, or grave maintenance, they became hungry and disturbed, afflicting the living as gui—ghosts or demons. Ethereal hun, or yang, souls entered the body after birth. Following death, hun souls both ascended to Heaven and entered ancestor tablets on a family or clan altar. One honored the hun souls, represented by the tablets, inviting their help and protection as shen, or kindly spirits, with shen also referring to the essential quality of all deities. Between po and hun, a person possessed ten souls. No amount of Christian revisionism could accommodate this anthropology.” (15)

A ideia da leitora, que o hun seria a alma, está errada uma vez que os chineses acreditavam na existência de 10 almas estando as mesmas ligadas a aspectos hun ou po.

Po era alma de natureza yin em comparação com hun de natureza yang.

Basicamente falamos de um conceito religioso baseado nos mesmos princípios que surgem na medicina tradicional chinesa e que são transversais a toda a cultura chinesa: yin e yang.

Obviamente que os chineses nunca abandonaram por completo o termo adoptando numa perspectiva mais naturalista, sendo atualmente o aspeto mental associado ao fígado, sem qualquer tipo de conotação espiritual.

E mesmo quando se fala da alma etérea, mesmo quando se faz uma apresentação da evolução histórica do termo, pelo menos deve-se ter a noção que a sua aplicação clínica nada tem a ver com a sua noção mais antiga.

Ele tem um significado em termos clínicos relativos à nossa capacidade de planear a vida, por exemplo, e está associado a experiências subjectivas que podem ser o resultado de doenças mentais como apatia com incapacidade de planear a vida, medo e timidez muito pronunciadas, ataques de irritabilidade, experiências fora do corpo durante o sono… e sim sensação subjectiva de estar a flutuar pelo bairro quando na realidade está deitada na cama a dormir (experiências essas que as pessoas podem aprender a viver).

São essas sensações subjectivas e clínicas relevantes para o aspeto mental a estudar e não a sua conotação religiosa e mais primitiva que não é usada hoje em dia pelos chineses.

mitos da acupuntura

Esclerose Múltipla: a dificuldade em traduzir e compreender a cultura e língua chinesa

Como observamos existem vários problemas associados à compreensão da medicina tradicional chinesa no Ocidente:

1 – Manipulações de conceitos de forma a satisfazer as nossas crenças;

2 – Traduções desvirtuadas devido a diferenças de regras gramaticais;

3 – Inexistência de conceitos que possam descrever determinados ideogramas ou dificuldade em contextualizar a tradução.

Um caso de estudo sobre a dificuldade dos ocidentais em compreender a medicina tradicional chinesa é a Esclerose Múltipla.

Há alguns anos, uma acupuntora, fez uma apresentação sobre medicina tradicional Chinesa e Esclerose Múltipla no VII Congresso Nacional da SPEM (Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla).

De acordo com a palestrante, a Esclerose Múltipla é devida a ataques de factores patogénicos externos, nomeadamente Humidade externa. A análise feita foi centrada nos 3 aquecedores (uma das teorias de patologia externa).

A EM (Esclerose Múltipla) foi associada a síndromes wei. Por seu lado o síndromes wei foram considerados como síndromes derivados da deficiência do wei qi, designado pela palestrante em causa como “energia defensiva”.

Também de acordo com a mesma, os factores patogénicos externos afectam “a energia yin do baço, estômago e pâncreas” e os síndromes wei podem apresentar espasticidade muscular.

Também ficou claro, na discussão que se seguiu, que os sintomas da Esclerose Múltipla podem ser explicados unicamente através da etiopatogenia apresentada (patologia externa – 3 aquecedores) e não de acordo com o desenvolvimento de patologia interna

Síndromes wei e wei qi

A palestrante confundiu dois termos que nada tem a ver um com o outro, quando falou na invasão dos factores patogénicos externos (wài xié). A confusão pode ser resumida nos seguintes pontos:

1 – o wèi qì é o qi defensivo do corpo. Os factores patogénicos conseguem agredir o corpo quando o wèi qì se encontra debilitado ou quando o factores patogénicos (wài xié) são muito intensos.

2 – a esclerose múltipla é analisada à luz dos síndromes wĕi  (wĕi  bìng) que são patologias derivadas da fraqueza do wèi qì.

A confusão é gerada pelo simples facto de que o wèi qì é um conceito muito diferente do wĕi bìng.

Esta confusão deve-se a erros de tradução, no ocidente, pois usa-se o ideograma Wei sem acentuação.

E obviamente à total falta de compreensão destes conceitos técnicos da medicina tradicional chinesa. Para deixar bem definido cada um destes conceitos:

wèi qì – significa qi defensivo ou protector. O significado de Wèi é defensivo. É um termo cuja tradução não apresenta problemas para as língua ocidentais. Qì continua a traduzir-se como qi uma vez que não é possível fazer uma tradução exacta do mesmo(1). A sua tradução por energia está errada(2).

wĕi  bìng – a tradução literal deste termo é algo como “doença da flacidez” ou “doença flácida”. Na realidade refere-se a um conjunto de doenças caracterizados por fraqueza e atrofia muscular(3).

Clinicamente podem existir síndromes wei (wĕi  bìng) sem origem externa e como tal não existir envolvimento do qi defensivo (wèi qì).

Também é possível existirem afecções do qi defensivo (wèi qì) sem existir doença flácida (wĕi bìng) como é exemplo a gripe, o sarampo, etc…

Portanto assumir que o síndromes wei (wĕi bìng) tem origem na fraqueza do wèi qì (qi defensivo) é pura e simplesmente errado.

Acima de tudo não deveríamos esquecer nunca que o termo wèi qì é completamente diferente de wĕi bìng e afirmar que o síndrome wei (wĕi bìng) é derivado de problemas associados ao wèi qì é algo simplesmente insustentável.

Síndromes Wei (wĕi  bìng) e Síndromes Jing

Antes de tudo urge perguntar o que são os síndromes wei. De acordo com a obra On the Standard Nomenclature of Traditional Chinese Medicine, publicada pelo Prof. Dr.º Xie Zhufan, síndromes wei (wĕi  bìng):

«literally means “flaccidity disease”, but it actually refers to a group of diseases characterized by muscular weakness and flaccidity(5)».

A obra técnica Traditional Chinese Internal Medicine, edição bilingue da Universidade de Beijing refere:

«Wei-syndrome refers to a condition when the muscles and tendons are week and flaccid or when muscles have atrophied. Clinical manifestations are muscular atrophy and debility of the whole body or parts of the body. Atrophy and debilitaty of the lower limbs with atrophic impaired mobility are commonly present, therefore, wei-syndrome are named “wei bi”. “wei” suggests atrophy and debility of limbs, persistent errection of tendons; “bi” suggests muscles are week and placid in lower limbs with impaired mobility.(6)”

Da mesma colecção a edição bilingue Acupuncture & Moxibustion refere:

«The Wei syndrome is characterized by flaccidity or atrophy of the limbs with motor impairment. It is also called “flaccid lame”, the leg is usually involved.(7)»

Giovanni Maciocia, na sua obra, A Práctica da Medicina Chinesa, Tratamento de Doenças com Acupunctura e Ervas Chinesas dedica um capítulo ao tratamento da síndrome atrófica na qual refere:

«… a síndrome atrófica consiste em um quadro caracterizados pela fraqueza dos 4 membros, gerando atrofia progressiva, estado flácido dos músculos e tendões, incapacidade de andar correctamente e eventualmente paralisia.(8)»

A palestrante não só confundiu síndromes wei (doença flácida) com wei qi (qi defensivo) como errou ao defender que os síndromes wei (wĕi bìng) podiam apresentar espasticidade muscular (como referido na discussão que se seguiu à palestra com um chato da plateia!).

Isto para não falar da confusão enorme com outros sintomas que, de acordo com a mesma doutora, também se podiam enquadrar nos síndromes wei (wĕi  bìng) como alterações oculares, de memória, etc…

Os síndromes wei (wĕi  bìng) descrevem unicamente fraqueza e atrofia muscular com alterações da capacidade de mobilidade. Na realidade, é afirmado na obra Traditional Chinese Internal Medicine:

«If the case accompanied by rigidity in the joint, muscular contracture, this is wei syndrome accompanied with jing-syndrome…(9)»

Nesta citação a Universidade de Beijing é bastante clara: se os sintomas de atrofia (wei syndrome) se fizerem acompanhar de sintomas de contratura muscular ou rigidez articular então falamos de uma mistura de síndromes wei com síndromes jing.

Uma vez que 84% dos pacientes com esclerose múltipla apresentam espasticidade muscular (10) seria mais correcto considerá-la uma combinação de síndromes wei e síndromes jing.

Numa última citação, a mesma Universidade refere outra associação entre dois tipos de síndrome:

«If weakness and flaccid of limbs accompanied with tremor, swaying step, slurred speech, this is wei syndrome accompanied by fei-syndrome, wich should be diagnosed and treated accordind to them.(11)»

Imensos pacientes com esclerose múltipla apresentam tremores dos membros e disfasia (perturbação na linguagem com descoordenação das palavras) mas estes sintomas não são apresentados nunca como síndromes wei mas sim como síndromes fei.

E a associação de sintomas implica desde logo a associação de síndromes.

Desta forma uma paciente como sintomas como disfasia, tremores dos membros, rigidez muscular, dor e atrofia muscular não tem síndromes wei mas sim uma mistura complexa de síndromes desde síndromes jing (rigidez muscular), síndromes BI (dor), possível síndrome fei (disfasia, tremores) e síndromes wei (atrofia muscular).

Em muitos pacientes a conjugação destes síndromes pode descrever-se como esclerose múltipla.

Esta conjugação de síndromes leva-nos então para a questão importante de saber definir os sintomas da (EM) no contexto da medicina tradicional chinesa.

Os sintomas da esclerose múltipla e dúvidas que levantam face a uma análise chinesa de patologia externa

Ao se analisar qualquer livro técnico de medicina interna chinesa onde se aborde a esclerose múltipla pode ler-se que se considera que a esclerose múltipla é um síndrome wei.

Isto pode gerar alguma confusão relativamente ao que escrevi ou à minha afirmação que a esclerose múltipla não se pode analisar unicamente como síndrome wei.

Qualquer pessoa que tenha lido livros técnicos de medicina tradicional chinesa pode notar que além da esclerose múltipla, existem uma outra série de patologias que podem ser consideradas como síndromes wei desde AVC a neuropatias degenerativas.

Qualquer patologia que apresente sintomas de atrofia muscular e perda de força se enquadra na categoria de síndrome wei. Mas isso não significa que seja unicamente um síndrome wei.

Na realidade uma doença que não apresente atrofia muscular com falta de força dificilmente se enquadra na teoria do síndrome wei.

Por exemplo, um AVC em que o paciente apresente espasticidade muscular dificilmente se pode enquadrar no conceito de síndrome wei. Mas um paciente com AVC caracterizado por atrofia muscular já se enquadra no síndrome wei.

Na obra Tradicional Chinese Internal Medicine é referido um conjunto de doenças ocidentais que podem ser analisadas sob o prisma dos síndromes wei:

“Myelitism acute infections polytradiculitis, progressive myotrophy, myasthenia gravis, periodic paralysis, progressive spinal paralysis, amyotrophic paralysis, hysterical paralysis and multiple sclerosis, syrinyomyelia and following obstruction of sensation manifesting flaccid and atrophic muscles, belong to modern medical science may be diagnosed and treated according to wei-syndrome”(12)

Ou seja qualquer patologia occidental caracterizada por atrofia e fraqueza muscular pode ser analisada sob o prisma dos síndromes wei na medicina chinesa.

Um paciente com esclerose múltipla que ainda não tenha desenvolvido sintomas de fraqueza muscular e atrofia muscular dificilmente se pode enquadrar na categoria de síndromes wei.

E quando olhamos para os sintomas da esclerose múltipla então temos um autêntico problema por resolver em termos de análise semiológica.

A esclerose múltipla apresenta uma série de sintomas que não se enquadram no conceito de síndrome wei.

Pacientes com esclerose múltipla podem apresentar ataxia (movimentos e tremores involuntários dos membros, disfasia, alterações urinárias e sexuais, dificuldades de memória e depressão.

Nenhum destes sintomas se enquadra no conceito de síndromes wei (wĕi  bìng).

Uma forma fácil de analisar isto é olhar para as descrições que pacientes com esclerose múltipla fazem da sua vida e a forma como esta é condicionada pelos sintomas que tem.

No site experienceproject.com, pacientes com esclerose múltipla podem descrever o seu dia a dia e as suas experiências. Para quem quer estudar a esclerose múltipla pelo prisma do paciente o site oferece dados fabulosos.

“Every second.  My life HURTS.  Noone is able to understand me.  Some of my friends don’t understand that I can’t do things they do.  A simple walk around the block.  For me, IMPOSSIBLE.  I have to manage myself to just be able to get my kids off to school.  And then, I am so exhausted I can hardly move afterwards (yay school is done for summer).  I am deathly afraid to go anywhere by myself.  My legs get stuck.  People look at me like I am crazy.  I get these horrible migraines and my eyes go funny.  I can’t drive most of the time, I am scared to.  I depend on my husband for everything but he works.   Even little tasks like doing one load of laundry will send me totally exhausted for the rest of the day.  O ya I can’t forget choking on my food and my psych. making me cry at almost every visit…  Anyone else completely frustrated with MS and need to vent, DO IT HERE!!!  So far I am getting no treatments.  I’m so scared to go to doctors because of the way they treat me.”(13)

Noutro site as descrições são ainda mais elaboradas, em particular dos primeiros sintomas e da forma como estes se começam a manifestar assim como o seu impacto na vida imediata do paciente.

Para quem estiver interessado num estudo em termos de análise semiológica, este site é como um oásis no deserto.

Apesar das descrições não estarem pensadas de forma a satisfazer a nossa curiosidade, quando enquadrada nas teorias tradicionais chinesas, podem dar-nos dados extremamente interessantes de analisar. As próximas citações são descrições de casos reais descritos pelos próprios pacientes.

“I was 7 years old when the right side of my face went numb, and I started slurring my speech. I felt really sick with “the flu” and was so tired, I kept falling asleep in class. In gym class, I was running, and my legs suddenly jerked up, and I fell down. I couldn’t move my legs or stand up. I got some feeling back and was able to walk in a robotic manner. I spent two weeks in the hospital complaining about the “fishes eating my legs,” and the wax paper over my right eye (this was 1977).”(14)

“I was 11 years old when I was diagnosed with multiple sclerosis. The pain was so great in my legs and feet. “(15)

“My multiple sclerosis symptoms included double vision, lasting about 10 minutes. I would trip easily. (I did not realize these were symptoms of anything neurological until after my diagnosis). My main symptom was numbness in my left hand and my thumb and two fingers on my right hand. I was examined for carpal tunnel syndrome, but when that failed, an MRI was recommended. That’s how they found my multiple sclerosis.”(16)

“The first noticeable thing was hip trouble (left side) it was ‘clunking’ very loudly and painful in certain positions (tightening of tendons) after came the writing, it started to become harder and harder to hold a pen and my writing became more and more ‘childish’ few months afterward my foot got harder to lift off the floor and all the while I’d experience prickly heat sensation in my lower legs and on the inner part of my thighs.”(17)

“My first onset of MS was the optic neuritis 6 years ago, I was 21. It only lasted 3 days. I went to 4 eye doctors, and got tested for diabetes and glaucoma. They all said my eyes were fine, and actually insisted I smoked too much weed and drank too much (at the time I agreed), and that I just needed better glasses for near sightedness, but yeah ok shows how stupid they are. Once it went away, I forgot about it for a long time. 6 years later, (last month) after being severely depressed and fatigued that whole time, the optic neuritis came back again. “(18)

Dor nas pernas? Depressão? Neurite óptica? Dormência do lábio ou da face? Enxaquecas horríveis? Isto não são descrições típicas de um síndrome wei.

O leitor, se profissional da área, pode fazer uma pequena experiência: começar a ler e a tentar interpretar os sintomas destes pacientes como se não tivessem esclerose múltipla e esquecendo todos os erros associados a misturas entre wèi qì e wĕi  bìng.

Um exercício técnico sobre esclerose múltipla na medicina tradicional chinesa

Façamos então esse exercício. Por exemplo a descrição pessoal dos primeiros sintomas da doença na letra do próprio paciente.

“I was experiencing extreme fatigue – almost falling asleep as I drove to work, then almost nodding off sitting in front of my computer. I also had sharp nerve pains in both of my hands and once in a while down my shins and knees. “(19)

Então temos um paciente com astenia generalizada, sonolência e dor aguda nas mãos e joelhos.

Com estes sintomas poderíamos levantar algumas questões interessantes.

As dores tinham sensação de peso associada?

Eram dores tipo facada?

Melhoravam ou agravavam com movimento?

Agravavam com alterações atmosféricas? Etc…

E sobre a sonolência e astenia também se poderia erguer outra série de questões:

há quanto tempo existem esses sintomas?

Estão relacionados com hábitos de vida?

Existem sintomas acompanhantes como sudação espontânea? Ou alterações alimentares?

Face pálida? Etc…

As questões levantadas acima possuem lógica no âmbito da teoria da medicina tradicional chinesa.

Mas não existe nada nas questões que nos leve para patologia externa dos 3 aquecedores (teoria usada na análise de padrões de humidade externa) ou para síndromes wei.

As questões relativas à dor são típicas de síndromes Bi ou padrões internos de dor (estase de sangue, etc…) enquanto as questões relativas à sonolência e astenia nos levam a pensar num padrão interno de vazio de qi com humidade.

Não existe nada nestes sintomas que implique de imediato uma análise em termos de patologia externa e muito menos algum sintoma que tenha a ver com wei qi.

Assumir que a esclerose múltipla é um síndrome wei e que esse síndrome wei é uma patologia do wei qi não é mais que o resultado de uma análise apressada e errada do diagnóstico da medicina tradicional chinesa aliada a uma ignorância gritante relativamente aos conceitos base da teoria tradicional chinesa.

Nos últimos exemplos podemos observar que existem sérios problemas de análise semiológica na leitura dos sintomas da esclerose múltipla e que dificilmente se podem enquadrar unicamente num contexto de patologia externa por humidade.

No próximo capítulo vamos observar que é totalmente impossível analisar a esclerose múltipla unicamente sobre o prisma de padrões de humidade por patologia externa.

Medicina Interna Chinesa da esclerose múltipla

Uma vez instalada a fraqueza e atrofia muscular pode considerar-se a existência de um síndrome wei.

No entanto é necessário saber se existem outros padrões associados ou o que deu origem a este síndrome wei.

O síndrome wei pode ter origem externa (patologia externa) ou interna (patologia interna).

A nível da patologia externa os padrões de humidade costumam ser os mais comuns. Em particular uma associação de humidade externa com deficiência do baço.

A deficiência do fígado e rim costumam ser os padrões internos associados a esta doença. Estes são os 2 padrões base da esclerose múltipla, em termos de análise teórica da medicina tradicional chinesa.

No primeiro caso existe uma associação entre um factor patogénico externo com um padrão de deficiência interno e no segundo caso existe um padrão típico de patologia interna(20).

No quadro abaixo são apresentadas as diferenças gerais entre estes 2 padrões base.

Humidade c/ deficiência do baço
Deficiência fígado e rim (21), (22)
sintomas
Humidade: sensação de peso nas pernas, formigueiro, tonturas
Baço: astenia generalizada
Fraqueza progressiva dos membros inferiores, tonturas, alterações de memória, alterações visuais (visão nublada, diminuição da acuidade visual, outras), alterações urinárias (incontinência urinária, outras) e sexuais (espermatorreia, disfunção eréctil), cãibras, zumbidos, língua trémula, surgimento e agravamento gradual dos sintomas

No entanto estes são padrões básicos. São os padrões mais comuns. Uma análise mais cuidada indica a existência de outros padrões que pode actuar isoladamente ou em conjunto.

Em baixo segue uma lista de outros padrões clínicos associados a síndromes wei e que se podem observar na esclerose múltipla:

Calor no pulmão com consumo dos líquidos orgânicos (23), (24): febre, febre elevada, agitação, tosse seca, vexação, sede, garganta seca, anúria, urina escassa e escura, dores articulares e musculares, dormência, atrofia muscular, fraqueza muscular e perda de força nos membros.

Invasão de humidade-calor (25), (26): sensação de peso, edema, dispneia, disúria tipo queimadura, dor tipo queimadura, obstipação, disfagia, flacidez muscular, dormência dos membros, atrofia muscular.

Deficiência do baço (no quadro acima apresento uma associação de humidade externa com deficiência do baço. No entanto o baço também pode gerar humidade) (27), (28): alterações de apetite, fezes moles ou diarreia, face pálida, atrofia e fraqueza muscular que surgem de forma gradual (29).

Outros padrões foram ainda referidos numa análise mais minuciosa feita por Val Hopwood e Clare Donnellan na obra Acupuncture in Neurological Conditions (30) onde apresentaram pequenas variações que podem surgir desde mucosidade calor a agitar o vento, vazio de qi e sangue (este padrão costuma existir quando órgãos como baço e fígado se encontram afectados) ou vazio de yin do rim e fígado (que é uma restrição dos padrões de deficiência que estes órgãos podem sofrer. Outro padrão presente, mas raro, é o vazio de qi do fígado/vesícula biliar).

Os casos clínicos apresentados na obra mencionada (Acupuncture in Neurological Conditions) espelham bem a diversidade de sintomas da esclerose múltipla, são retratos fiéis dos relatos feitos por pacientes e já aqui citados e nada tem a ver com a análise simplista da explicação em termos de humidade externa (muito menos com as confusões de wei qi e wei bi).

“Overactive bladder in multiple sclerosis

A 23 year old woman with multiple sclerosis presented with frequency, urgency, urge incontinence and nocturia. This had become worse over the last few months since a recent relapse of multiple sclerosis.”

“Constipation in multiple sclerosis

A 52 year old woman with multiple sclerosis presented with a range of symptoms including low mood, irritability, anger and tearfulness, headaches most days, infrequent bowel activity, opening bowels once each week with difficulty, poor sleep,

waking frequently, daytime fatigue and numb left arm. In addition she had poor condition of skin below her knees which was dry, red and in places cracked. She could transfer with help from one person but was unable to walk.”

“Fatigue affecting daily activities in multiple sclerosis

A 38 year old woman presented with fatigue limiting her ability to carry out daily activities, including looking after her children, particularly later in the day when her fatigue was more pronounced. She had been diagnosed with multiple sclerosis 5 years previously. She was able to walk with one stick. The fatigue had become worse recently since she had started Tysabri.”(31)

“Depression in multiple sclerosis

A 42 year old woman presented with depression, uncertainty about the future, muzzy head and generalized fatigue. She was on antidepressant medications. She was able to walk unsteadily with elbow crutches. On assessment truncal ataxia and mild lower limb spasticity were evident. She had recently retired from work due to ill health.”(32)

Obviamente que as confusões entre wei qi e wei bi podem surgir, especialmente quando não se sabem distinguir estes dois termos ou quando se cometem erros na análise da etiologia do síndrome wei.

A questão que se levanta neste caso é: pode existir fraqueza do qie qi num síndrome wei (wei bi)? Sim pode.

Mas isso não significa que o síndrome wei (wei bi) seja uma patologia do wei qi. Significa tão somente que determinados estilos de vida podem lesar o qi do baço gerando um vazio de qi do baço que eventualmente também lesa o wei qi.

Tanto a fraqueza do baço como do wei qi podem ser provocados pela invasão de humidade externa. Mas também podem não ser provocados pela mesma. Pode existir deficiência do qi do baço e do wei qi sem existir humidade.

E podem existir casos de esclerose múltipla sem afecções do wei qi como é o caso da deficiência de jing do rim ou o vazio de yin do fígado. E podem existir outros factores patogénicos externos a atacar o corpo e a provocar esclerose múltipla que não a humidade. O calor é disso um exemplo.

O factor patogénico externo, calor, pode entrar no corpo e provocar a exaustão dos líquidos orgânicos levando a uma má nutrição dos músculos, tendões e ossos (33), (34).

Reflexões sobre raciocínio clínico e terapêuticas

Matéria Médica e acupuntura: operacionalização técnica

O processo operacional da medicina chinesa passa por 3 etapas principais: diagnóstico, princípios terapêuticos e terapêuticas aplicadas.

A Matéria Médica (vulgo fitoterapia) e acupuntura são terapêuticas e fazem, como tal, parte da última etapa.

De forma generalizada podemos dizer que, anatomicamente, a fitoterapia e acupuntura são muito parecidas.

Um protocolo é um conjunto de pontos de acupuntura enquanto uma fórmula é um conjunto de drogas de fitoterapia.

À primeira vista o seu modos operandi é muito idêntico. Quanto mais intenso é um sintoma mais pontos de acupuntura se usam para tratar o mesmo da mesma forma que se usam mais plantas ou uma maior dose de determinada droga.

Regra geral o tratamento de fitoterapia e acupuntura pretende contrariar a evolução dos sintomas.

Assim numa dor que agrava com frio faz-se agulha quente e prescrevem-se drogas que aquecem os meridianos.

Porém as semelhanças acabam por aqui. Na generalidade a matéria médica chinesa e acupuntura são terapêuticas muito semelhantes porque tem aproximadamente a mesma finalidade: tratar sintomas contrariando a sua evolução, tratando sintomas causais ou acompanhantes relevantes para o tratamento da queixa principal.

Quando observamos a forma de actuar destas duas terapêuticas, então, observam-se diferenças gritantes.

As diferenças entre matéria médica e acupuntura

Quando se formula um protocolo de acupuntura pensa-se nos princípios de combinação de pontos que definem etapas como a selecção de pontos locais, distais e sintomáticos ou selecção de pontos do mesmo meridiano.

Mas na matéria médica não tem lógica seleccionar drogas locais e distais. Não tem lógica seleccionar drogas do mesmo meridiano.

O pensamento necessário para se construir um protocolo de acupuntura é totalmente irrelevante para se desenvolver uma fórmula..

Por seu lado, as fórmulas de matéria médica chinesa possuem uma composição bastante prática. Uma fórmula é composta por diferentes drogas com diferentes funções.

Assim as drogas de uma fórmula são classificadas de acordo com a sua função em drogas imperadoras, drogas ministras, drogas guia, etc…

Num protocolo de acupuntura não tem lógica falar-se em pontos imperadores ou pontos guias.

Qual a razão de fitoterapia e acupuntura serem tão diferentes, quando à primeira vista parecem tão idênticas? A razão é simples.

Estas terapêuticas são aplicadas em diferentes paradigmas de pensamento no diagnóstico chinês. Eu explico-me melhor.

Muitas vezes quando se fala de diagnóstico em medicina chinesa usam-se termos como vazio de qi ou estase de sangue ou humidade-mucosidade, etc…

Esta linguagem estranha é a linguagem técnica da medicina chinesa. Os termos usados são designados como padrões ou síndromes. O vazio de qi é um padrão clínico, assim como o vazio de yin ou a estase de sangue.

Quando estudamos livros técnicos de matéria médica chinesa é possível perceber que as drogas são classificadas de acordo com esses padrões clínicos.

Desta forma, as drogas podem ser classificadas como tónicas de qi, tónicas de yin, drogas que activam o sangue e dispersam a estase, etc…

Por outras palavras, a matéria médica chinesa está feita para ser usada de acordo com os padrões clínicos.

A divisão das drogas de uma fórmula em drogas imperadoras, drogas ministras, etc… é somente uma maneira fácil e prática de aplicar na prática a categorização teórica das mesmas.

Mas o mesmo não acontece com a acupuntura. Os pontos não são classificados como tónicos de yin, ou tónicos de sangue.

Os pontos de acupuntura são classificados como pontos de emergência, pontos shu das costas, pontos mu da frente, pontos de convergência, 5 pontos shu, etc…

Isto acontece porque na maioria das vezes a acupuntura é usada, não de acordo com os padrões ou síndromes mas sim de acordo com as patologias de meridianos.

Por isso toda, ou quase toda, a combinação de pontos se baseia nos meridianos. Selecção de pontos locais e distais tem lógica quando pensamos numa localização geográfica do sintoma no meridiano.

Por exemplo, o tratamento da dor de garganta pode ser feita com os pontos 18IG e 4IG. O 18IG é um ponto local e o 4IG é um ponto distal. São ambos pontos do mesmo meridiano.

Outros princípios de selecção de pontos como pontos de acordo com meridianos acoplados ou pontos de acordo com pares de meridianos são também baseados nos meridianos.

No fundo, todo o sistema de casos longitudinais ou meridianos não é mais do que uma forma de definir áreas de influência sejam elas locais ou distais, sendo a combinação de pontos uma forma de chamar a atenção para essas áreas de influência.

Áreas cinzentas entre matéria médica e acupuntura chinesa

Existem, sem dúvidas, áreas cinzentas entre farmacologia e acupuntura na medicina tradicional chinesa.

Esta divisão não é tão linear quanto as linhas anteriores possam ter dado a pensar.

Efetivamente existem pontos classificados como recuperadores de yang e, apesar de não existir uma classificação própria, existem pontos que se considera terem capacidade de nutrir yin, suplementar yang ou activar o sangue.

Da mesma forma as drogas têm tropismos específicos para determinados meridianos.

Mas ter um tropismo para um meridiano e pertencer ao meridiano são coisas diferentes. Daí não ter lógica falar em drogas locais e distais.

Definir pontos com capacidade de nutrir o yin não é a mesma coisa que classificá-los como tónicos de yin tal como se faz com as drogas.

Ou seja, apesar destas áreas cinzentas nota-se um clara diferença entre a classificação das drogas e a classificação dos pontos. Isso obviamente tem repercussões na forma como se pensam essas terapêuticas.

As diferenças de operacionalização técnica

O estudo de drogas ou pontos separados poderá ajudar a compreender melhor estas diferenças entre matéria médica e acupuntura.

O ponto 6BP/sanyinjiao é considerado tónico de yin, recuperador de yang, eliminador de humidade (tanto drena humidade como seca humidade) mas é também um ponto sintomático extremamente importante para tratar problemas ao longo do meridiano do baço.

Assim é dos pontos mais usados para tratar problemas digestivos ou menstruais, por exemplo. E pode ser usado independentemente do padrão clínico.

Por outro lado a droga massa fermentata (shen qu) pode ser usada para sintomas digestivos mas está muito limitada ao padrão clínico.

O mesmo sintoma com um padrão clínico diferente é o suficiente para a tornar contra-indicada. Neste caso seria contra-indicada em padrões de plenitude calor no estômago.

Os pontos de acupuntura são aconselhados em padrões clínicos opostos, tem maior liberdade de acção em relação ao padrão clínico pois a sua base é o sistema de meridianos.

A diferença entre farmacologia e acupuntura nota-se tanto a nível das contra-indicações como de estratégias terapêuticas usadas no tratamento dos pacientes.

A nível das contra-indicações clínicas vamos usar o ponto 10BP/Xuehai e a planta angélica sinensis como exemplos.

O ponto 10BP chama-se xuehai que significa mar de sangue. O ponto é usado para tratar padrões associados ao sangue como vazio de sangue, estase de sangue ou plenitude calor no sangue.

No entanto não existe classificação para padrões de sangue em acupuntura e o ponto não apresenta contra-indicações face aos diferentes padrões clínicos. A sua função é limitada pelo meridiano a que pertence.

O mesmo não se passa com a droga angélica sinensis que é classificada como tónica de sangue. A sua natureza morna torna-a contra-indicada em padrões de plenitude calor no sangue.

Ou seja, as drogas estão mais limitadas ao tipo de padrão do que os pontos de acupuntura.

Isto porque a limitação dos pontos de acupuntura não tem a ver com os padrões clínicos mas sim com as patologias dos meridianos.

As diferenças na prática clinica

Esta diferença permite diferente liberdade de acção ao terapeuta consoante as terapêuticas que pretende aplicar.

Num paciente com diarreia o acupuntor não precisa ter a certeza do diagnóstico. Basta ter noção dos principais pontos dos meridianos afetados.

Desta forma na diarreia é possível fazer a seguinte combinação: 25E, 30E, 36E, 37E, 15BP, 6BP, 4BP.

Neste protocolo estão 3 pontos locais da região abdominal (25E, 30E, 15BP), 4 pontos distais localizados nos membros inferiores (36E, 37E, 6BP, 4BP), pontos de acordo com o mesmo meridiano (estômago e baço) e pontos de acordo com meridianos acoplados (estômago-baço).

É possível usar este tipo de protocolo para tratar diarreia independentemente do padrão clínico seja este vazio de yang ou humidade-calor.

No entanto, se pretender usar uma fórmula para tratar diarreia é bom saber qual o padrão clínico.

Dar uma fórmula tónica de yang a um paciente com humidade-calor só vai agravar o estado do paciente. E vice-versa.

Numa paciente com vazio de yang dar drogas eliminadoras de humidade-calor só vai agravar o problema.

Um protocolo de acupuntura mal seleccionado, quanto muito é inútil.

Os cuidados extra com acupuntura e as suas contra-indicações não estão delimitadas pelos padrões clínicos mas sim pela puntura das agulhas (com excepção de algumas doenças onde pode ser contra-indicada!)

Ou seja a diferença entre ter um protocolo de acupuntura correcto ou não muitas vezes é somente a diferença entre a inutilidade e o sucesso clínico, entre a ausência ou presença de beleza na sua criação.

No entanto uma prescrição pode ter consequências que variam desde efeitos maus para o paciente a efeitos clínicos benéficos! Tudo dependente dos padrões clínicos.

Diferenças entre a medicina tradicional chinesa e a medicina chinesa ocidental

Nas linhas atrás deixo a ideia que existem perspetiva muito diferentes da medicina tradicional chinesa no Ocidente, especialmente entre os tradicionalistas e os carreirista.

Nas próximas linhas vou demonstrar as diferenças existentes entre a medicina tradicional chinesa e aquilo que os ocidentais consideram que é a medicina chinesa. A esta versão vou chamar medicina chinesa ocidental.

Ocidentais são mais tradicionalistas

Uma das caracteristicas que os chineses referem, e que já foram várias vezes mencionadas em artigos anteriores, é que os ocidentais são mais tradicionalistas que os chineses, pois os chineses vêm a medicina chinesa como algo em constante evolução.

A maioria das teorias antigas é adaptada a pontos de vista mais contemporâneos (dentro dos paradigmas de pensamento asiático obviamente), são aplicadas novas teorias ou procura descrever-se teorias antigas em linguagem contemporânea.

A revisão política que Mao Tsé Tung ordenou da Medicina Chinesa, a adaptação de conceitos para o contacto com o Ocidente, ou as reformas (e constantes adaptações) de paradigma japonesas com o surgimento de formas de acupuntura contemporânea exemplificam bem o que quero dizer.

Mas os ocidentais só querem saber de clássicos e conceitos sem qualquer atualidade cultural ou clínica.

Os chineses tem o hábito de pegar na sua cultura e fazer uma interpretação da mesma com os conhecimentos atuais, enquanto os acupuntores ocidentais desprezam os conhecimentos atuais e procuram unicamente os conhecimentos mais tradicionalistas possíveis.

Um exemplo claro são as críticas disfarçadas feitas à forma analítica de pensar os protocolos de acupuntura nas universidades chinesas face à aceitação acrítica de afirmações feitas por um qualquer guru que segure a bandeira da “tradição”.

Exemplos ocidentais com várias escolas da Califórnia (Miriam Lee tornou-se famosa) ou europeias (Van Ghi) exemplificam bem esta filosofia.

Os ocidentais não sabem traduzir ou interpretar

Os ocidentais tem de passar por cima de vários obstáculos para compreender a medicina tradicional chinesa.

E por muito bem intencionados que sejam, muitas vezes essas armadilhas condicionam muito os conhecimentos adquiridos. Exemplos não faltam:

1 – as traduções erradas de conceitos chineses são prática comum;

2 – a interpretação de textos é feita de acordo com essas traduções erradas e sobre um prisma vitalista que é estranho ao paradigma cultural chinês.

Ou seja, os ocidentais aprendem aquilo que os chineses nunca ensinaram.

Por exemplos, não é possível encontrar uma obra técnica chinesa que traduza o Qi enquanto “energia” e as poucas obras técnicas que falam sobre a tradução desse termo referem que essa tradução é errada.

No entanto, na medicina chinesa ocidental um ideograma descontextualizado como o Qi passa a ter um significado concreto de “energia”.

Existe um loop negativo entre traduções erradas que geram interpretações erradas que por seu lado geram mais erros de tradução. Erros que se alimentam a si próprios.

As traduções erradas de Soulié de Morant são o exemplo mais claro.

Primeiramente traduziu o conceito chinês de vasos longitudinais como meridianos mantendo o conceito quase original nos vasos maravilhosos. Por isso hoje se diz “meridiano do rim” e “vaso de concepção”.

Associando esta má tradução com a tradução errada de qi por energia e surgem os conceitos de meridianos como “canais energéticos”.

Esta má interpretação vai condicionar as futuras traduções de literatura chinesa alimentando-se a si próprias… ao longo de todo o século XX.

Os ocidentais não tem perfil clínico

Muitos gurus e grandes mestres de medicina tradicional chinesa ocidental poderiam ser facilmente classificados como pseudo-filósofos sem perfil clínico.

O background cultural vitalista, a falta de uma leitura objetiva e assertiva da cultura chinesa, o foco no tradicional e esotérico faz com que sejam muitas vezes profissionais que se focam demasiado em leituras condicionadas de muitos clássicos e obras técnicas de medicina chinesa, onde as divagações filosóficas servem para esconder a incapacidade de raciocínio clínico.

Isto observa-se

1 – na incapacidade de muitos acupuntores ocidentais construirem protocolos de acupuntura chinesa lógicos;

2 – a dificuldade em integrarem a acupuntura em abordagens biomecânicas e neurofisiológicas (como fazem osteopatas, fisioterapeutas e médicos);

3 – a incapacidade de reconhecerem os limites clínicos da aplicação de determinadas técnicas vendendo a medicina tradicional chinesa como uma fórmula mágica para todo o tipo de problemas;

4 – a aceitação acrítica de frases feitas e verdades absolutas como “os outros tratam sintomas, nós tratamos as causas”.

A comparação entre abordagens inovadoras feitas por outros profissionais de saúde (punção seca segmentar, EPI, acupuntura neurofuncional, etc…) com a monotonia seguidista constante dos livros de acupuntura chinesa escritos por ocidentais, que são cópias uns dos outros, é um claro indicativo da ausência de perfil clínico da maioria dos acupuntores ocidentais.

A trilogia da medicina tradicional chinesa ocidental

O desejo de conhecimentos tradicionalistas, os constantes loops de más traduções e interpretações ainda mais erradas aliadas a personagens sem qualquer perfil clínico fazem com que uma grande maioria dos acupuntores ocidentais vivam numa redoma de crenças e conhecimentos que não são partilhados por mais ninguêm.

Nem pelos profissionais de saúde com quem deviam trabalhar e muito menos pelos chineses (ou outros asiáticos) de cuja verdade se dizem portadores.

A prova mais cabal é a comparação entre a literatura técnica escrita por chineses e ocidentais.

Como já provei noutros artigos:

1 – os livros técnicos escritos por ocidentais tem muito mais palha;

2 – tem mais referências a citações de clássicos;

3 – dão muito mais importância a conceitos que não são usados ou falados nas obras técnicas escritas por chineses (hun e Po);

4 – tem abundância de conceitos sem nexo na cultura e medicina chinesa como “energias” ou “síndromes energéticos”.

Desafios da Medicina Tradicional Chinesa no Ocidente

Existem vários desafios na medicina tradicional chinesa no ocidente.

Estes desafios na medicina tradicional chinesa são provocados por interesses financeiros, lobbies, crenças religiosas, entre outros.

Os desafios na medicina tradicional chinesa são tanto externos (outros profissionais de saúde, falta de regulamentação) como internos (uma classe profissional com muito fraca qualidade técnica e científica, ausência de criatividade e inovação, etc…) sendo estes últimos os maiores desafios.

Os carreiristas

Neste caso a grande referencia será a Ordem dos médicos.

A sua critica constante à presença de elementos filosóficos na medicina chinesa é correta e muito bem colocada, pois muitas vezes esses elementos filosóficos são desfasados de prática clinica.

As suas denúncias dos misticismos infantis e falta de conhecimento científico da maioria dos especialistas de medicina chinesa também é correta.

O problema das críticas da Ordem dos médicos é que são feitas unicamente à luz da sua noção de hierarquia social.

Ou seja não existe, na realidade, uma postura científica e isenta de interesses relacionados com classes sociais.

A questão final não é se a acupunctura é científica mas sim quem a pode exercer e em que condições.

Da mesma forma que a Ordem dos Médicos critica a medicina tradicional chinesa pelas suas componente filosóficas apoia a Sociedade Portuguesa de Acupuntura Médica que baseia parte do seu tratamento nos mesmos fundamentos filosóficos.

Os energéticos

O maior desafio e, pelo menos em Portugal, uma das principais razões pelas quais ainda não se encontra regulamentada a acupuntura.

Nesta classe estão incluídos basicamente todas as instituições de ensino de medicina tradicional chinesa em Portugal.

Todo o Ocidente enferma deste tipo de manipulações dos conceitos base da medicina tradicional chinesa.

A medicina chinesa é vista como uma medicina “energética” e O Qi traduz-se como “energia” e qualquer paciente que surja na clínica sofre de síndromes “energéticos”.

É o mundo das energias desconhecidas para os cientistas, para a medicina tradicional chinesa e para os preponentes das mesmas.

O mundo onde:

1 – na acupuntura não se usam luvas para poder passar a energia pelos dedos;

2 – não se desinfeta a pele para não afetar o fluxo de energia no corpo;

3 – faz-se chi kung quando se toca em material contaminado para eliminar energias patológicas;

4 – prescrevem-se fitoterápicos sem qualquer tipo de problema porque estes atuam a nível energético enquanto os medicamentos atuam a nível químico;

5 – qualquer reação alérgica às agulhas é encarada como o corpo a eliminar energias perversas.

Enquanto isso não há um único livro técnico de medicina chinesa publicado pelas principais universidades chinesas que defenda tal coisa.

As obras de tradutores, especialistas de medicina tradicional chinesa (chineses) e sinólogos todos apontam para o erro de tais traduções mas mais de 90% dos acupuntores ocidentais fala constantemente em “energias”.

Os tradicionalistas

Devemos olhar para a medicina chinesa como um ponto de partida ou de chegada?

Os vasos longitudinais descritos na Medicina tradicional chinesa, e conhecidos no ocidente como meridianos, é uma ideia que deve ser constantemente propagada ou uma base de trabalho inicial sem futuro aparente?

Os tradicionalistas correspondem a uma pequena minoria de especialistas que se dedicam exclusivamente à medicina tradicional chinesa.

Conhecem os seus termos técnicos, não concordam com as sistemáticas manipulações “energéticas” dos conceitos e teorias da medicina chinesa mas olham para a mesma como algo acabado.

Algo que não precisa de grandes remodelações, que deve ser ensinado, seguido mas não questionado.

Qualquer ideia nova terá de ser proveniente de algum livro muito velho a que se possa chamar clássico.

Os clássicos da medicina chinesa são vistos como referências ao nível dos melhores artigos e obras científicas com a vantagem que nunca desactualizam.

Não concordam com os “energéticos” mas, tal como estes, são contra uma ação demasiadamente intrusiva da ciência.

Raciocínio lógico baseado em anatomo-fisiologia humana não é apreciado nem se procura desenvolver caso não esteja adaptado a uma determinada linguagem filosófica e restrito a um background cultural.

Os não alinhados

Esta classe inclui tanto especialistas de medicina chinesa, cientistas, médicos, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde.

Tal como os dois primeiros não representam necessariamente um grupo de classes profissionais ou instituições com uma ideologia muito própria.

Encontram-se nos mais diversos espectros da sociedade humana e que pode incluir:

1 – o fisioterapeuta que usa acupuntura para aliviar espasmos musculares em atletas;

2 – um acupuntor que não prescreve determinado fitoterápico num paciente altamente medicado;

3 – bioquímico que estuda a farmacologia chinesa na procura de novos fitoquímicos com potencial biomédico.

Para alguns a medicina chinesa é vista como um ponto de partida interessante mas extremamente incompleto e corrompido por linguagem filosófica e preceitos culturais que muitas vezes não servem uma análise clínica objetiva.

Desta forma fazem acupuntura sem usar necessariamente meridianos ou usam estes conceitos dentro de princípios científicos sólidos (miologia funcional, sistema nervoso, trilhos anatómicos, cadeias de busquets, etc…).

Distanciam-se dos “energéticos” pois reconhecem imediatamente a assustadora ignorância científica e a total incompreensão da cultura e medicina chinesa (para alguns este segundo aspeto nem sequer é relevante).

Muitos poderão enquadrar-se facilmente na classe dos carreiristas (acupuntura médica, fisioterapia invasiva, classe própria de acupuntores, etc…) enquanto outros não se enquadrariam nunca nesta classe, nem sequer encontrariam lógica para se enquadrarem nesta categoria.

O futuro

Quando falamos da prática da medicina tradicional chinesa falamos de uma prática clínica que se enquadra nas atuais profissões de saúde.

Como profissionais de saúde devíamos ter a consciência da importância de duas bases fundamentais: ciência e bom senso.

Os energéticos não tem nenhuma e os tradicionalistas não dão importância devida à primeira (o que leva a faltas na segunda).

Qualquer profissão de saúde no século XXI terá de ter obrigatoriamente uma forte base científica e isto é mais verdade a cada dia que passa.

Se tratamos o corpo com acupuntura então a base do nosso raciocínio deveria ser a anatomo-fisiologia desse corpo e não uma qualquer noção de energias imaginárias ou abstrações semiológicas muitas vezes desfasadas da realidade.

O futuro da medicina tradicional chinesa não se encontra na total incompreensão dos conceitos de medicina chinesa e não encontra refúgio no santuário de um qualquer clássico.

A acupuntura tem validade na medida que a sua ferramenta mais usual (a agulha de acupuntura) pode ser usada em tratamentos mais eficazes baseados em anatomia humana.

A farmacologia chinesa não tem futuro a tratar vazios de yin ou estases de sangue mas sim na compreensão da sua estrutura química e na forma como afeta diversas vias de sinalização celular ou mecanismos de biologia molecular.

A medicina tradicional chinesa, neste momento, oferece grandes contributos para uma medicina do futuro através do estudo da sua extensa farmacopeia tradicional como demonstrou o recente prémio Nobel da Medicina.

Mas este prémio Nobel não foi possível porque se seguiram cegamente clássicos com centenas de anos ou se deu um abraço a uma árvore para absorver a energia da natureza.

O prémio Nobel da Medicina foi uma consequência direta de se pensar a medicina chinesa como um ponto de partida seguida da aplicação dos melhores métodos de trabalho científico.